O Homem Baile

Bem afiados

Músicos em boa forma querendo mostrar serviço e repertório consagrado fazem a diferença no ótimo show de reunião do Guns N’Roses. Fotos: Katarina Benzova/Divulgação Guns N’Roses.

O re-humanizado Axl Rose mostra melhor forma física e vocal no show da reunião com Slash e Duff

O re-humanizado Axl Rose mostra melhor forma física e vocal no show da reunião com Slash e Duff

Um Axl Rose relativamente re-humanizado, um Slash querendo mostrar definitivamente quem é o cara na banda que ajudou a fundar e da qual foi chutado, um timaço de feras em estado de graça e um repertório consagrado nos últimos trinta e poucos anos, com uma perolazinha adicionada aqui e acolá. Eis o resumo do ótimo show que o Guns N’Roses fez, com a volta da formação (quase) original, neste republicano feriado de 15 de novembro, no Engenhão, no Rio. Teve dancinha, teve solo de guitarra, teve explosões, teve voz rouca, teve papel picado, teve voz aguda, teve pegada punk, teve balada, teve drama, teve felicidade ampla geral e irrestrita na turnê “Not In This Lifetime”. Era agora ou nunca mesmo.

Só não teve um relacionamento sério entre Axl e Slash. Para saber onde estava um no palco era só olhar para o outro. Sempre separados ou próximos em um limite de distância determinado por lei que só Axl Rose deixava estreitar; Slash jamais. Determinado, o guitarrista encarnou como poucas vezes se vê nos palcos o conceito de “faça a sua parte que eu faço a minha”, ao menos do ponto de vista de Axl. Porque com o baixista Duff McKagan, também da formação clássica, e enlouquecido Richard Fortus, o outro guitarrista, a interatividade é plena. Também, pudera. Slash e todos do Guns foram expulsos da banda pelos surtos megalomaníacos de Axl, que passou a ser literal e legalmente o dono da banda, daí a expressão “o Guns do Axl”, cunhada para identificar o grupo que veio ao Brasil quatro vezes nos últimos anos (veja como foi em 2001, 2010, 2011 e em 2014).

Mas se Slash topou a empreitada, sabe-se lá em que condições – fala-se até em contrato de trabalho para Axl – ele que sare suas feridas em pleno palco. É o que parece fazer, e, do ponto de vista do público, que não está nem aí para litígios de rockstars mimados, o resultado é bem melhor do que se poderia esperar. Ou, por outra, o que não poderia era se esperar menos de um dos guitarristas mais icônicos do rock contemporâneo. Daí o solo arrepiante da impressionante “Estranged”, reinserida nos shows em 2011; ou o uso de vocoder em “Rocket Queen”, com solos de mão trocada pra todo lado, numa das melhores performances coletivas da noite; ou nas incríveis evoluções de “Knockin’ On Heaven’s Door”, que lhe fornecem um inesperado frescor; ou ainda na verdadeira operação resgate para erguer “This I Love” ao nível das outras músicas da fase áurea do Guns.

O guitarrista Slash em plena interação com o baixista Duff McKagan; Axl Rose aparece no fundo

O guitarrista Slash em plena interação com o baixista Duff McKagan; Axl Rose aparece no fundo

Ela é uma das três do único álbum gravado pelo “Guns do Axl”, “Chinese Democracy” e que cede ao show outras duas. Uma é a própria faixa-título, que recebe um tratamento mais rock jamais visto nos palco, e a outra é “Better”, na qual Slash, Fortus e Duff melhor se saem juntos. As três são apenas alegorias discretas que não fazem diferença, mas servem para Axl Rose deixar a marca de um disco praticamente solo. O vocalista, contudo, está em boa forma física e vocal, e, ainda, depois de ter aceito o convite para cantar com o AC/DC, parece ter se aprumado, deixando para trás a fase rockstar decadente. Aos 54, enfim, sugere ter amadurecido não por completo, mas o suficiente para se respeitar como último grande ícone do rock mundial, sem ter que viver encastelado e longe dos palcos. Por isso aparece desprovido de figurinos para disfarçar o avançar da idade na maior parte do tempo, não omite os trejeitos que o consagraram e que todo mundo quer ver, e – o melhor – encara com sucesso as dificuldades de seguir atingindo as notas mais altas que o passado consagrou; falta-lhe fôlego, não voz.

O show não tem apenas um, mas vários começos. “It’s So Easy”, a mistura precisa de hard rock com punk rock, parece só ensaio para o enlouquecimento geral quando, uns 10 minutos depois, o público vem a baixo pra valer com “Welcome to the Jungle”. Talhada para o abre alas, é uma das mais festejadas e parece empolgar até Axl Rose, que lança o pedestal do microfone longe. A sensacional “You Could Be Mine”, com aquela bateria que você conhece na introdução, dessa vez pilotada por Frank Ferrer, é outro estopim sem pavio, ainda mais com a animação atualizada do filme “Exterminador do Futuro” no telão; a música foi tema da segunda parte da série. E Axl passa com boa nota em seu teste mais rigoroso. “Sweet Child O’ Mine”, a canção mais que perfeita do Guns, em composição e arranjo, é expressão máxima de felicidade, seja na introdução de guitarra, no refrão repetido, na paradinha para o vocalista brilhar, e no desfecho pauleira que toda música cadenciada deve ter. E o público adora.

Novidade, por assim dizer, o repertório do show tem duas. A pedrada riffenta “Out Ta Get Me”, que ainda não tinha sido tocada nessa turnê pelo Brasil, e “Yesterdays”, discreta, incluída pela primeira vez no giro pela América do Sul. Mas a menção honrosa é para a muitíssimo bem recebida “Coma”, que não era tão tocada nos shows nem na época em que foi lançada, no álbum “Use Your Illusion I”, em 1991, e é uma das estrelas da “Not In This Lifetime Tour”. Slash, claro, deita e rola nessa também, em mais de 10 minutos de sonzera. Mais ou menos o mesmo tempo que os músicos levam parar percorrer a emblemática “November Rain”, uma peça do hard rock baladeiro assertiva em todas as suas partes e interpretada com a rara felicidade que funde alma e técnica em proporções milimetricamente calculadas. É quando o público coordena por si só uma bela coreografia com balões vermelhos iluminados pelas lanternas dos aparelhos emburrecedores; enfim foram úteis. E tá pra nascer silhueta mais marcante que a de Slash empunhando a guitarra naquele videoclipe, que é o que vem à mente numa hora dessas.

Axl Rose diante da multidão que encheu o Engenhão, no Rio, para o ótimo shows de reunião do Guns

Axl Rose diante da multidão que encheu o Engenhão, no Rio, para o ótimo shows de reunião do Guns

Há espaço ainda para não hits como “Double Talking Jive”, que Slash curte, ou para covers como “Attitude”, do Misfits, preferida de Duff McKagan, e até devaneios instrumentais que prestam vassalagem a Eric Clapton e Pink Floyd, procedimento necessário para a preparação do piano de calda usado por Axl em “November Rain”. O que suscita a dúvida: por que não incluir, então, a assoviante já no berço “Pacience”, “Pretty Tied Up” ou “My Michelle”? Lamento que perde o sentido quando o bis começa com a sensível e não menos colante “Don’t Cry” (os tecladistas Dizzy Reed e Melissa Reese aprovam), e o desfecho obrigatório vem com “Paradise City” e um toró de papel picado. Em um show com efeitos especiais econômicos se comparados com os anteriores – até o fogaréu de “Live And Let Die” foi suprimido – fica a imagem de músicos que voltaram a tocar juntos com a vontade de mostrar, um para o outro, quem é o tal. A boa e velha tensão que mantém o rock vivo, ainda que em um espetáculo essencialmente revivalista. Quem ganha é o público, sobretudo o que não teve a oportunidade de ver o Guns N’Roses no auge, no início dos anos 1990. Não separa mais, não, pessoal.

A Plebe Rude diz que não tem nada a ver com o Guns N’Roses, mas essa já é a segunda vez que o grupo abre shows da turnê deles. O incomum é o fato de o grupo, seminal para o rock nacional, ter muito menos hits para embalar multidões, o que de fato só acontece em “Proteção”, enxertada com trechos de “Pátria Amada”, do Inocentes, necessária para esses tempos difíceis, e sobretudo “Até Quando Esperar”, que encerra o show, com cerca de 45 minutos, em grande interação banda/público. Mas a Plebe não arrefece para encarar a multidão que se formava e superar problemas do som – em um bom volume, diga-se – e com a voz castigada de Clemente. Outras músicas que brilham são “Minha Renda” e “Johnny Vai a Guerra (Outra Vez)”, e, entre as novas, “Anos de Luta”, na qual o líder do grupo, Philippe Seabra, reconhece no público o entretenimento fútil citado na letra. Clique aqui e veja a resenha do show da Plebe no Circo Voador, em setembro.

Set list completo Guns N’Roses:

1- It’s So Easy
2- Mr. Brownstone
3- Chinese Democracy
4- Welcome to the Jungle
5- Double Talkin’ Jive
6- Better
7- Estranged
8- Live and Let Die
9- Rocket Queen
10- Out Ta Get Me
11- You Could Be Mine
12- Attitude
13- This I Love
14- Civil War
15- Coma
16- Love Theme From The Godfather
17- Sweet Child O’ Mine
18- Yesterdays
19- Wish You Were Here + Layla (Instrumental)
20- November Rain
21- Knockin’ on Heaven’s Door
22- Nightrain
Bis
23- Don’t Cry
24- The Seeker
25- Paradise City

Imagem com os fãs que encheram bolas de gás e iluminaram com lanternas durante 'November Rain'

Imagem com os fãs que encheram bolas de gás e iluminaram com lanternas durante 'November Rain'

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Comentários enviados

Existem 2 comentários nesse texto.
  1. Fabio em novembro 17, 2016 às 11:04
    #1

    Bela resenha!

    Achei o show muito bom, mas poderia ter sido mais enxuto. Muitas baladas/covers que esfriaram a galera.
    Acho que o Slash usa um Talk Box e não um vocoder…
    Também achei que ficou faltando My Michelle e Pretty Tied Up.

    Axl podia ter evitado colocar Slash na função de imitar os solos e timbres do Gilmour e do Clapton. Foi o único porém do show pro Slash, que tava impecável.

  2. Ezd em novembro 20, 2016 às 12:48
    #2

    Porque vocês não atualizam a seção Filipetagem? Sinto falta das dicas de shows, principalmente nacionais. Valeu!

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