Rock é Rock Mesmo

Um brinde para Lemmy Kilmister!

O líder do Motörhead, um dos maiores ícones do rock em todas as épocas, viveu a vida que cada um de nós sempre quis viver, como um rockstar mesmo contraditoriamente sem sê-lo. Fotos: Marcos Bragatto.

motorhead96Nós somos o Motörhead e vamos botar pra fuder. Era assim que Lemmy anunciava um show do Motörhead. Empunhando o baixão Rickenbacker e com a cabeça enfiada embaixo de um microfone montado propositadamente mais alto que o normal, ele exibia verrugas, barbas e costeletas e uma indumentária da qual não se despia jamais. Lemmy era um super herói do rock que andava na rua do jeito que subia no palco, com o fardamento de um verdadeiro ícone do rock. Original. Peculiar. O rock antes do rock, disseram por aí. Jamais existirá alguém como Lemmy Kilmister, disseram também.

A primeira vez que ouvi falar do Motörhead foi quando uma das locutoras da Fluminense FM anunciou uma música em plena programação normal da rádio. Estava na carona de um amigo playboy pelos idos de 1984 e ele colocava o Motörhead nas alturas pela alusão ao motor e às motos de que tanto gostava. Lemmy e o Motörhead quase sempre são uma unanimidade não burra que unifica e sociabiliza até os burros e os imbecis. Mais tarde, em 1989, na mesma Flu FM, gravei para sempre uma frase que chamava para o primeiro show do grupo no Brasil: Imagine todo o peso do mundo caindo sobre sua cabeça! Era a voz de Milena Ciribelli (se não for, vale a história) que, muito mais do que eu conhecia da banda, me convenceu. Precisava ir nesse show. Já recebia salário há tempos e poderia pagar pelo ingresso.

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De dentro no Maracanãzinho, só me lembro de, do nada, ter passado do espaço das cadeiras para a pista, já que a organização não era o forte nessa época. Depois, vi a porrada comer de lado a outro, com direito a lançamento de cadeiras nos cornos uns dos outros, e entendi o que Luiz Antonio Mello queria dizer quando afirmava categoricamente que punks e heavyes haviam nascido para eliminarem uns aos outros. Tudo mudaria com o thrash metal, um dos subgêneros do metal do qual o Motörhead é precursor, e que veio para fazer o impossível, fundir para sempre as duas tribos. E o show? Mais barulho, no péssimo sentido, do que barulho, no melhor dos sentidos, graças ao terrível som do Maracanãzinho, cuja bela estrutura de concreto armado jamais servirá para um espetáculo musical.

Desnecessário dizer que tive que ir atrás de tudo o que se relacionava com a banda depois dessa, sempre influenciado por figuras que encontrava em tudo o que era porta de show, como o clássico Sérgio Motörhead ou mesmo o Jorjão, brevíssimo colega de refinaria que me ajudava a azucrinar o sono dos operários cansados após um dia de trabalho duro. Em 1996, uma cena marcante. Ainda mais jovem que hoje e com poucos anos de experiência nesse jornalismo rocker, estava com uma máquina dependurada no pescoço nos bastidores do Monsters Of Rock, em São Paulo. Ali no Pacaembu, entre os camarins e o palco, havia uma distância razoável a ser percorrida a pé pelos músicos, à céu aberto, terreno fértil para fotógrafos fazerem cliques únicos. Ainda não existiam os aparelhos emburrecedores. Fotografei vários músicos, mas quando vi o trio do Motörhead se aproximando, estaquei. Os três, Lemmy, Phil Campbell e Mikkey Dee, todos de preto e óculos escuros, caminhando a passos marciais como quem ia para uma guerra. Pra que a foto mesmo, se jamais esquecerei dessa imagem?

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Ainda em 1996, antes do Monsters, recebo – e estava em casa, em tempos de vida de operário – uma ligação de uma assessora amiga que trabalhava em uma gravadora e precisava de alguém para cobrir um buraco em uma agenda de entrevistas com o Lemmy Kilmister. O problema é que eu deveria ligar para o sujeito Deus em 10 minutos. Corri para fazer uma pauta chinfrim e liguei para os quintos dos infernos onde ele deveria estar. Educadamente, ele atendeu e me pediu para ligar um pouco depois, e assim aconteceu mais uma vez, só para a coisa ficar mais dramática. Na terceira vez, conversamos. Foi gentil, mas monossilábico. Também, as perguntas não eram essa Coca-Cola toda, admitamos. Ficou na minha cabeça para sempre aquele “take care” de despedida. Jamais esquecerei. E a entrevista, na íntegra, pode ser lida nesse link.

Ouvindo Motörhead e me convertendo em crítico de rock, logo vi que, embora apontado como banda das mais pesadas e associado ao heavy metal (Lemmy nunca gostou disso), o grupo sempre fez rock’n’roll, pertinho do rock de raiz e do blues, só que um pouquinho mais pesado. A única coisa que não se pode subtrair do Motörhead, vamos e venhamos, é o peso. Descobri também que as músicas são, em sua esmagadora maioria, uma ode ao rock em si, a um jeito rock’n’roll de se viver que Lemmy tão bem emblematizou, daí ser chamado de Deus pelos quatro cantos do mundo. Lemmy era a sua própria verdade dentro do rock, a verdade do rock. Era nosso herói do rock’n’roll dentro e fora dos shows, em cima do palco ou tomando umas e outras no bar da esquina.

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Em 2001, me aventurei a ir a um festival que disseram que seria o maior de heavy metal em todo o mundo em pouco tempo, um tal de Wacken Open Air, na cidade de Wacken, lá nos cafundós nórdicos da Alemanha. Lá, em um determinado momento, em meio a muito trabalho – a ideia era fotografar o máximo possível de cerca de 70 bandas em três dias -, eu e meus amigos da Roadie Crew (nome emprestado de uma música do Motörhead, diga-se) avistamos Lemmy na fila do caixa para comprar umas cervejas no Backstage Bar, ao qual tínhamos acesso. Curiosamente, trajava uma calça azul e uma camisa amarela, completados por um chapéu de vaqueiro branco. Tanta gente se ajuntou em torno dele que desistiu e sumiu. Ficamos olhando e comentando, num tom de perplexidade tonta. Nesse show, pude registrar o “pouso” do avião do álbum “Bomber”, numa foto parecida (veja no final do texto) com a que virou capa do disco “No Sleep ‘Till Hammersmith”, de 1975, considerado um dos melhores discos ao vivo dos anos 1970.

Há sempre quem reclame, mas a discografia do Motörhead jamais decepcionou. Para uma banda de 40 anos e 22 discos de estúdio, contudo, é fácil apontar fases melhores que outras, mas temos que considerar que para nós, ouvintes, as coisas mudam muito. Nesse tempo todo um adolescente bebum vira adulto, pai de família e vai trabalhar em um banco, muda de opinião. Lemmy, não. Nesse tempo todo ele esteve lá, praticamente com a mesma roupa e rocando o mesmo rock’n’roll esporrento, independente de fazer sucesso. Reparem que Lemmy jamais foi um rockstar com os faniquitos de Axl Rose, as mil mulheres comidas por Gene Simmons, o glamour de Mick Jagger ou as crises de um abalado Kurt Cobain. Lemmy estava sempre lá fumando ao menos um maço de Marlboro por dia junto com uma garrafa de uísque.

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Ao todo – pesquiso aqui – Lemmy teve nove companheiros se revezando em guitarra e bateria, sendo que o grupo chegou a ser um quarteto em alguns momentos. Convenhamos que é pouco para 40 anos, ainda mais com um porralouca como Lemmy no comando. Talvez a última das formações, com o guitarrista Phil Campbell e o baterista Mikkey Dee, que já durava 23 anos, seja a mais conhecida e fique marcada como definitiva, mas quem curte Motörhead de verdade não esquece a que teve “Fast” Eddie Clarke na guitarra e o baterista Phil “Philthy Animal” Taylor, também falecido este ano (saiba mais). Foram eles que gravaram a espetacular trinca “Overkill”, “Bomber”, ambos lançados em único ano, 1979, e o clássico dos clássicos “Ace Of Spades”, de 1980.

Mas há outros e – repita-se – não existe disco ruim na discografia do Motörhead. Você muda, mas Lemmy, que é Deus, jamais. Como desdenhar, por exemplo, de “Orgasmatron”, de 1986, cuja faixa título, sobre um monstro do final dos tempos, virou símbolo do estouro do nosso Sepultura? Ou de “Rock’n’Roll”, de 1987, que tem “Eat The Rich”, música tema do filme homônimo, no qual Lemmy atua como canastríssimo ator? Ou de “1916” (1991), que traz “Going to Brazil”, feita pra gente? E tem ainda “Aftershock” (resenha aqui), o ótimo penúltimo disco, que, lançado há dois anos, conserva o status de grande compositor de Lemmy. Por vezes, no óbito de um artista, diz-se que ele vai fazer falta, mesmo que tenha perdido relevância nos anos pré-morte. Não é absolutamente o caso de Lemmy, que seguia fazendo bons discos um após o outro e botando pra fuder nos shows do Motörhead.

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Além do já citado “No Sleep ’til Hammersmith”, clássico absoluto e necessário, o Motörhead tem outros milhares de discos ao vivo e coletâneas. Um ao vivo que muito aprecio, comprado na Gramophone da 7 de setembro, é “Nö Sleep at All”, de 1988, e entre a fase mais recente, vale pegar a dupla de DVDs “The Wörld Is Ours – Vol. 1: Everywhere Further than Everyplace Else” e “The Wörld Is Ours – Vol. 2: Anyplace Crazy as Anywhere Else”, que tem até cenas gravadas no Brasil.

Em 2004, no show do Canecão, que morreu antes de Lemmy, tive um rompante e segui para a beirada do palco onde abracei uma das caixas de som por alguns minutos. Ok, tinha tomado umas e amanheci com o ouvido zumbindo, sinal claro de que a noitada de rock foi boa. Nem precisava, era sempre assim em um show do Motörhead. “Porra, Motörhead de novo!”, desdenhei em 2007, quando soube do show da Fundição Progresso (resenha aqui). Saí de lá extasiado com o show e com a notícia de que Lemmy queria por que queria ir na Rua Ceará, tradicional point do rock na cidade. Reclamamos – somos burros às vezes – de o grupo aparecer no elenco do Rock In Rio de 2011, e foi outro showzão (relembre), com participação de Andreas Kisser, do Sepultura; reclamamos também. Foi este meu último encontro com um show do Motörhead.

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Isso porque desidratado, Lemmy foi aconselhado a não tocar no Monsters Of Rock desse ano, em São Paulo. No meio do público, bem lá na frente, gelei, achei que Lemmy tinha morrido e parti para a sala de imprensa para apurar o que de fato acontecera, já que eram dispersas as informações. Refeito do susto – sempre temi a morte de Lemmy ao vivo, sobre o palco – ainda vi um restinho do quebra galho Motörhead – Lemmy + Sepultura (saiba mais). A morte sempre surpreende, mas, sabemos todos, Lemmy estava prontinho para nos deixar. Vinha sofrendo com problemas de saúde de origens diversas, tendo inclusive que diminuir o consumo de álcool que lhe era característico e parado de fumar. Problemas que incluíam diabetes, arritmia cardíaca, hematomas e lesões no púbis/quadris. Em 2013, ano em que deixou o palco do festival Wacken Open Air no meio do show e cancelou a turnê do grupo várias vezes, colocou um marca-passo no peito (saiba mais). Em setembro, o Motörhead teve que cancelar diversos shows da turnê americana, incluindo um em Austin, no Texas, porque o vocalista não conseguiu cantar, depois três músicas. Lemmy Kilmister morreu ontem, dia 28 de dezembro de 2015 (saiba mais).

Sempre se lamenta a morte. No caso de Lemmy, talvez quem mais tenha emblematizado o rock em todos os tempos, tem-se a impressão que quem morreu foi o rock. Bobagem. O rock nunca morre. Lemmy também não, porque sua obra, seu legado estão aí e vão ficar aí para sempre. Falem a verdade, Lemmy viveu a vida que cada um de nós sempre quis viver. Curtiu a vida adoidado pra valer, uma vida de rockstar, mesmo contraditoriamente sem sê-lo. Vida de sexo drogas e rock’n’roll, e nunca teve crises por causa disso. A exceção dos últimos anos, quando o corpo começou a jogar a toalha, teve uma vida daquelas. Mesmo nos últimos dias, resistiu, trocando o uísque por vodca. E subindo no palco. E compondo. E gravando disco. Vamos, então, e para sempre, aproveitar tudo que ele nos deixa. Vamos festejar e viver o rock como o rock deve ser. Obrigado, Lemmy.

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Comentários enviados

Apenas 1 comentários nesse texto.
  1. Fabio G em janeiro 6, 2016 às 11:38
    #1

    Eu tava nos shows de 89, no da Fundição e no do RiR.
    Não lembrava desse show do canecão…

    O Show de 89 foi o meu primeiro show “de verdade” de rock. Eu tinha 15 anos…logo depois teve o Testament no Circo…o Sepultura tb no Circo…e o resto é historia.
    Antes de 89 ja tinha visto alguns shows de BRock, tipo Titas e Barão…
    Lembro do susto ao chegar nas cercanias do Maraca, vendo as figuras tipicas de um show de metal/punk/rock…depois la dentro do Maracanazinho, a porradaria comendo e eu e 2 broders magrelos quase fomos esmagados…tivemos que sair lá pela frente pulando as grades de proteção… e logo depois arrancaram as grades de proteção e as pessoas ficavam prensadas no palco.
    O show foi curto (acho q terminou antes do programado), e ainda tivemos que esperar na Estauta do Belini umas 2 horas pela nossa carona (a mãe de um dos broders).
    Foi mais tenso a espera lá fora do que a porradaria lá dentro, pois os “organizados” da Raça e da Jovem Fla chegavam de madrugada pra embarcar nos onibus que os levariam pra algum jogo fora do Rio.

    Em 2011, 2 dias antes do show do RiR, eu vim dos EUA no mesmo voo do Lemmy. Só soube disso quando eu dei de cara com ele, que tava sozinho na fila do passaporte no Galeão. Ele meio perdido, de chapéu (obvio)…sem nenhum aspone, nem manager, nem nenhum outro membro da banda. Apesar de ser proibido fotografar nessa área do aeroporto, consegui uma selfie um pouco embaçada com o Lemmy. Lembro bem da cara dele qdo pedi pra tirar a foto. Meio puto (cansado depois do vôo), meio de saco cheio, ele mandou um: “Yeah, Yeah..Go Ahead” e tiramos a foto.

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