O Homem Baile

Pra vida toda

Simplicidade e repertório bem concatenado concedem ‘um quê’ de histórico à ótima exibição do The Who no Rock In Rio. Fotos divulgação Rock In Rio: Maurício Porão/Estácio (1), Fernando Schlaeepfer/I Hate Flash (2) e Eugênio Laurenzano/Estácio (3, 4 e 5).

O vocalista do The Who, Roger Daltrey, canta e toca violão no início do show histórico no Rock In Rio

O vocalista do The Who, Roger Daltrey, canta e toca violão no início do show histórico no Rock In Rio

O show começou há cerca de meia hora e o guitarrista brinca com o público dizendo que vai incluir uma música que não estava, de início, no repertório. “Vocês devem estar pensando em um hit como ‘Magic Bus’”, diz Pete Townshend, ao sorrir em direção a Roger Daltrey, como cúmplice de uma tirada que só o humor britânico permite. Ele manda os primeiros acordes de “Bargain”, que se realmente não é o sucesso a ser pedido pelo público, não desagrada aos reles mortais que se acotovelam na frente e para bem distante de um Palco Mundo lotado. Para eles, em um show desses, tudo é mais ou menos novidade, afinal, estão diante do The Who, pela primeira vez na cidade, como estrela maior dessa edição do Rock In Rio, no sábado (23/9).

O palco, gigante e todo trabalhado na megalomania, já no nome, é reduzido a espécie de coreto, com todos os músicos reunidos no centro. Além de Townshend e Daltrey, respectivamente guitarrista e vocalista, ambos fundadores do The Who, há mais de 50 anos, a banda não tem numerosa formação com naipe de metais, percussão, vocalistas de apoio e o escambau. O mais estrelado é o baterista Zak Starkey, filho de Ringo Starr e que já tocou no Oasis, brilhante na arte de ocupar o posto que já foi do extraordinário Keith Moon, sem cair no erro de imitá-lo. Os telões, gigantes, só exibem as imagens do próprio show e nada mais, para facilitar a vida de quem está lá nos quintos dos infernos da Cidade do Rock e também quer receber a energia de um show, desde já, histórico. Que o rock, então, cumpra seu papel, sem firulas desnecessárias.

Roger Daltrey e o guitarrista Pete Townshend, remanescentes da formação original, se divertem no palco

Roger Daltrey e o guitarrista Pete Townshend, remanescentes da formação original, se divertem no palco

Ou por outra, uma aula de história, não daquelas em que um sujeito fica falando sobre um passado remoto. Mas uma aula prática contada em prosa e música por quem estava lá fazendo e vivendo a história do rock, esse ente intangível que aplaca a juventude em todos os cantos do planeta há décadas. Do jeito que é concatenado, o repertório é sábia linha mestra de tudo isso, com ênfase nos álbuns “Tommy” (1969), “Who’s Next” (1971) e “Quadrophenia” (1973), uma trinca da pesada cujos títulos são conhecidos até pelos menos chegados – eles existem? – ao The Who. E passa também por “My Generation” (1965), da fase notadamente mod que influenciaria o punk rock, cuja faixa título refundou a juventude ao cravar o premonitório verso “espero morrer antes de ficar velho”. Ao todo, nove dos 12 álbuns do grupo têm músicas ao show; veja a lista no final do texto.

É “My Generation”, antes de “Bargain”, que realça mais ainda um clima de diversão, sobretudo entre Pete Townshend e Roger Daltrey, o que mostra que eles realmente estão curtindo o show e essa primeira vinda ao Brasil como um todo. A música tem um solo extra no final, e um estalar de baixo que faz Jon Button, o baixista atual, lembrar o monstruoso John Entwistle, cuja herança para a mundo do rock é bastante generosa. É quando Townshend, no início, saúda o Guns N’Roses, que encerraria a noite, e nota-se que o tal público do Guns recebe o Who quase com a reverência dos diplomatas, um sinal de respeito nem sempre verificado em festivais. E vai por água abaixo a falácia dos produtores que cinicamente venderam o Who como co-headliner, já que o show é três músicas menor que o de São Paulo, por exemplo, e dura menos da metade (1h40) das três horas e meia da apresentação do Guns N’Roses (veja como foi). Honestamente, isso, a essa altura do fato, ali diante do The Who botando pra quebrar, não faz a menor diferença.

Gesto característico: Roger Daltrey gira o microfone pelo cabo, como se fosse uma marimba

Gesto característico: Roger Daltrey gira o microfone pelo cabo, como se fosse uma marimba

Porque o show em si, sem “The Seeker” (que o Guns tocou), “The Rock” e mesmo “Eminence Front”, da fase inicial da saudosa Fluminense FM, não perde o encanto, muito menos o caráter histórico e de um didatismo atroz. Porque, sim, é para aprender com “Join Together”, com uma cama de harmônica no fundo que faz Townshend ensaiar uma dancinha sem noção; na amplamente atualizada “You Better You Bet”; e até na bela “Behind Blue Eyes”, uma das que o público mais conhece. Em “Love, Reign O’er Me”, já na segunda metade do show, uma performance vocal extraordinária de Daltrey, em que pese sua combalida saúde nos últimos tempos, garante todo o arrepio causado pela dramaticidade da canção original, com o plus de ser cantada a plenos pulmões por um senhor que já superou as 73 primaveras. A cada vez que gira o microfone pelo cabo, como se fosse uma marimba, o público delira ao identificar o gesto consagrado pelo cantor.

Pete Townshend também faz das suas, não só tocando com maestria as melodias que consagram sua carreira, mas fazendo o público vibrar a cada vez que gira o braço direito em torno do ombro enquanto toca a guitarra, movimento símbolo de si próprio e um dos grandes ícones do rock como um todo; parece pouco, mas não é, ainda mais ao vivo, ali na frente de todos. O show, que, honra seja feita, é bom o tempo todo, atinge o ápice na parte final, com as músicas mais conhecidas. Caso da marcial “Baba O’Riley”, com destaques na voz de Roger Daltrey e no baixo galopante de Button, com direito a um inédito salto de Townshend; de “Pinball Wizard”, que realça a parceria vocal da duplinha Daltrey/Townshend; e o arremate sensacional com “Won’t Get Fooled Again”, quando a banda parece não querer deixar o palco. Que a lembrança não se apague jamais e que a inflada de egos que eles receberam por aqui resulte em uma volta o mais rápido possível. Ainda dá tempo.

Pete Townshend agita ao lado de Roger Daltrey, com o ótimo Zak Starkey revirando a bateria no fundo

Pete Townshend agita ao lado de Roger Daltrey, com o ótimo Zak Starkey revirando a bateria no fundo

Set list completo:

1- I Can’t Explain
2- Substitute
3- Who Are You
4- The Kids Are Alright
5- I Can See for Miles
6- My Generation
7- Bargain
8- Behind Blue Eyes
9- Join Together
10- You Better You Bet
11- I’m One
12- 5:15
13- Love, Reign O’er Me
14- Amazing Journey
15- Sparks
16- Pinball Wizard
17- See Me, Feel Me
18- Baba O’Riley
19- Won’t Get Fooled Again

Roger Daltrey, 73 anos, agitando a multidão que povoou o entorno do Palco Mundo do Rock In Rio

Roger Daltrey, 73 anos, agitando a multidão que povoou o entorno do Palco Mundo do Rock In Rio

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Comentários enviados

Existem 5 comentários nesse texto.
  1. Porão em setembro 29, 2017 às 13:44
    #1

    Que texto lindo, Bragatto!!! Emocionado aqui! Chamei mãe, mulher e gato pra lermos juntos!!!! Que legal ter participado de alguma forma dessa festa!!!

  2. Andre em outubro 3, 2017 às 19:32
    #2

    Ótimo texto. Eu estava lá. Chorei porque esperava este show desde que ouvi ‘Who’s Next’ e ‘Who by Numbers’, e depois de ter ido ao Veneza ver ‘Tommy’. Ouvir as quatro peças principais de ‘Tommy’ ao vivo (’Amazing Journey’, ‘Sparks’, ‘Pinball Wizard’, ‘See me, Feel me’) foi de uma emoção que não consigo descrever nem por em palavras. ‘Won’t get Fooled Again’ continua sendo o hino utópico que espera por um final feliz para a humanidade que aparentemente nunca virá. Valeu!

  3. Rafael em outubro 16, 2017 às 11:11
    #3

    Show espetacular! Um dos melhores da história do RIR.

  4. Carlos Butler em novembro 17, 2017 às 12:28
    #4

    Um show com todos os “quês” de histórico. Assisti ao Who em SP (eles fechando, tocando após o The Cult), RJ e Santiago (de novo, antes do GNR). De uma cidade para outra, o show diminuiu 20 minutos (2:00, 1:40 e 1:20). Grande resenha, Bragatto. []’s Butler.

  5. Carlos Butler em novembro 17, 2017 às 12:32
    #5

    Sexta passada, toquei tambourine no palco com a banda “Fato Relevante”, vestindo camisa da Tour América Latina do
    The Who. Grandes lembrancas.
    PS : Vou procurar um link na rede com algum dos shows na íntegra. Já tá na hora de rever em HD.

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