O Homem Baile

Emoção pura

Sinais de cansaço não diminuem a força das canções e a catarse coletiva no encerramento da turnê brasileira de Paul McCartney no Rio. Fotos: Marcos Hermes/Divulgação.

A destreza e simpatia de Paul McCartney no início do show de enceramento da turnê, no Maracanã

A destreza e simpatia de Paul McCartney no início do show de enceramento da turnê, no Maracanã

Do nada, bem no meio do show, a banda se manda do palco para descansar e um piso móvel aos poucos vai subindo de modo a erguer um único homem, sozinho com seu violão, pra cima de todos. Ele é seguramente um dos maiores seres humanos vivos e já passou da sétima década de plena atividade. Paul McCartney nas alturas catando “Blackbird” ao violão, sobre um cubo gigante ladeado por projeções é a imagem certeira de uma vida e de uma época, e emociona a todos. Pessoas que respondem mais adiante erguendo, cada uma delas, da beirada do palco à mais distante cadeira das arquibancadas, cartazes com duas sílabas de reconhecimento universal, que faz de “Hey Jude” espécie de conteúdo do inconsciente coletivo em todas as épocas e lugares. É assim que pulsa, vibra e deixa a lágrima escorrer o Maracanã lotado neste sábado, 16/12.

Está certo que desta vez o movimento dos cartazes não foi espontâneo – eles foram impressos em gráfica e distribuídos a todos na entrada do estádio; não é assim com as torcidas ditas organizdas? -, mas quem se importa? Assim como os balões de gás coloridos iluminados por lanternas de aparelho emburrecedor que fizeram de “Ob-La-Di, Ob-La-Da” um incrível espetáculo de cores flutuantes. Uma solução simples e alternativa às inefáveis pulseiras poluidoras usadas pelo Coldplay. Trechos de um espetáculo visual que em nada supera o maior bem do gigantismo de uma plateia em um show de rock como esse: a cantoria. São 66 mil pessoas cantando tudo que é letra com o gogó afiado, sobretudo na parte final, em um espetáculo que dura duas horas e meia e tem quase 40 músicas – veja a lista no final do texto - apresentadas por uma bandaça que toca junto há muitos anos.

É nada mais nada menos que o desfecho da “Got Back Tour”, que só no Brasil teve oito apresentações + um show intimista em Brasília. Uma turnê que, vamos e venhamos, não muda tanto assim em termos de repertório apresentado e realça mais pela grandiosidade de músicas que atravessam décadas encantando gerações. O que não exclui gemas da carreira solo de Paul, como “Maybe I’m Amazed”, do primeiro disco, numa versão densa, pesada, nem “novidades” dos trabalhos mais jovens, representados por quatro dos cinco discos mais recentes; justamente o último, “McCartney III”, de 2020, não foi contemplado. Dessas, destaca-se a dobradinha “Here Today”, turbinada por ser dedicada a John Lennon, e “New”, faixa-título do bom álbum de 2013, com um “quê” de psicodelia.

Paul Wickens (teclado), Rusty Anderson e Brian Ray (guitarra, Paul no meio), e Abe Laboriel Jr (bateria)

Paul Wickens (teclado), Rusty Anderson e Brian Ray (guitarra, Paul no meio), e Abe Laboriel Jr (bateria)

Análise quase protocolar da crítica em um show em que o que interessa mesmo é o que vem depois, com clássicos dos Wings, a outra banda de Paul McCartney, e aquela saraivada de hits dos Beatles, que, no fundo, no fundo, é o que interessa. Assim, brilham com peso “Get Back”, a linda “Let It Be”, com um belo solo do guitarrista Rusty Anderson, e “I’ve Got a Feeling”, mesmo com uma mórbida “participação” de Lennon cantando no telão, mas que o público adora mesmo assim. Dos Wings, “Live and Let Die”, espécie de “cover reverso” do Guns N’Roses, que atualizou a canção dos anos 1990 pra cá, é a que tem mais efeitos especiais: fogos, tiros, labaredas cenográficas e o escambau. Efeitos que ainda têm feixes de raios laser disparados sobre o público, algum papel picado aqui e acolá, algo relativamente modesto para um palco de soluções simples, mas com telões gigantes e de boa resolução, um de cada lado do palco e outro no fundo, atrás da banda.

Paul se divide entre baixo, guitarra, violão, bandolim, piano e teclado e sai se bem obviamente em todos. Mas, positivamente, sente o peso de seus 81 anos, e daí a expectativa que este seria o derradeiro show do músico. Não é só a barba por fazer, o penteado descabelado ou o olhinho esquerdo caído a noite toda (não era assim em 2014, relembre), é a voz de Paul, desgastada, que desafina e lhe falta em várias músicas, o que pode causar constrangimento doravante. É de se admirar, inclusive, que ele tenha conseguido mandar muito bem, na raça, já no bis, a espetacular versão de “Helter Skelter”, de difícil apuro vocal e exigente fôlego pulmonar. Turnês menores, com mais intervalos entre os shows, menos viagens e mais descanso devem estar na prescrição médica deste senhor de 81 anos. Talvez tenha sido essa a última turnê pelo Brasil.

Vacilos? Também os temos. Não se pode começar um hino como “Something” com um ukelele (espécie de cavaquinho havaiano), mesmo que a canção, que homenageia seu autor, George Harrison, tenha sido salva do meio para frente, com a entrada da banda. Tampouco deixar de fora “Yesterday”, uma das músicas mais regravadas de todos os tempos. E um set semiacústico no meio do show, que estraga “Love Me Do”, é no mínimo desnecessário. Tanto que o destaque desse trecho é a dancinha do baterista e figuraça Abe Laboriel Jr. As falas em português lido/decorado de Paul McCartney, caprichando nos esses do sotaque que dizem que os cariocas têm, escapam desse grupo porque são, acima de tudo, engraçadas, e revelam um lado gaiato que aproxima o ídolo do fã. Nesses tempos estranhos, é disso que o povo gosta, é isso que o povo quer.

Paul e o clássico baixo Hofner: músico também tocou guitarra, piano, teclado, bandolim e ukelele

Paul e o clássico baixo Hofner: músico também tocou guitarra, piano, teclado, bandolim e ukelele

Reparos que se revelam insignificantes, contudo, em um show desse porte, carregado de emoção o tempo todo, em uma ou outra música, dependendo do que ela representa para quem e em que fase da vida de quem, mas significações há aos montes. A melhor parte seguramente é o desfecho antes do bis, numa sequência de seis blockbusters que começa com os balões de “Let It Be” e termina com os cartazes com o “na-na” de “Hey Jude”. A menção honrosa no bis – econômico até – fica, repita-se, para a versão porrada de “Helter Skelter”. Mais que um momento para se ter na memória para todo o sempre, o show é o sinal do início do ocaso de uma época que parecia nunca acabar, mas que vê o fim cada vez mais próximo. Longa vida, Paul McCartney!

Set list completo

1- Can’t Buy Me Love
2- Junior’s Farm
3- Letting Go
4- She’s a Woman
5- Got to Get You Into My Life
6- Come On to Me
7- Let Me Roll It
8- Getting Better
9- Let ‘Em In
10- Nineteen Hundred and Eighty-Five
11- Maybe I’m Amazed
12- My Valentine
13- I’ve Just Seen a Face
14- In Spite of All the Danger
15- Love Me Do
16- Dance Tonight
17- Blackbird
18- Here Today
19- New
20- Lady Madonna
21- Jet
22- Being for the Benefit of Mr. Kite!
23- Something
24- Ob-La-Di, Ob-La-Da
25- Band on the Run
26- Get Back
27- Let It Be
28- Live and Let Die
29- Hey Jude
Bis
30- I’ve Got a Feeling
31- Birthday
32- Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band
33- Helter Skelter
34- Golden Slumbers
35- Carry That Weight
36- The End

Fãs de Paul McCartney na grade do palco erguem os cartazes de 'Hey Jude' antes de o show começar

Fãs de Paul McCartney na grade do palco erguem os cartazes de 'Hey Jude' antes de o show começar

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