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Primeira e única

Com imagens raras, documentário ‘A Maldita’ mostra o pioneirismo da Rádio Fluminense, que catapultou rock nacional da década de 80. Fotos: Reprodução (1 e 2) e Olney Siqueira/Divulgação.

amaldita19-1Citar a década de 80 como a época de ouro do rock nacional, do surgimento das bandas mais representativas do gênero e que estão aí até hoje colhendo os louros de uma carreira de sucesso é fácil. Mas, quando não havia absolutamente nada (nem o rock nacional!), em um deserto cultural típico dos períodos de exceção – entenda-se ditadura militar - quem fez o rock florescer foi uma pequena rádio encravada em uma salinha em um edifício em frente a rodoviária de Niterói. É o que mostra o documentário “A Maldita”, sobre a Rádio Fluminense FM, dirigido por Tetê Mattos. Em um ótimo trabalho de pesquisa, o filme mostra cenas raras, numa era pré-VHS, dos produtores e locutoras em ação, além dos desdobramentos do efeito da programação da rádio junto aos ouvintes e na sociedade de então.

A estreia aconteceu no entardecer deste sábado (14/2), na Gávea, zona sul do Rio, dentro da mostra “Première Brasil – Retratos Longa do Festival do Rio”, e contou com a presença de vários profissionais que fizeram a Maldita, como a rádio era conhecida, incluindo locutoras, produtores, integrantes de bandas e fãs que participaram do documentário. A presença dos ouvintes é uma das boas sacadas do filme, que realça a interatividade da comunicação possível da época, em um processo de retroalimentação da informação vital para a rádio e salientada tanto de um lado como de outro. Não bastava ouvir a rádio, mas participar, sugerir, reclamar, vestir literalmente a camisa e defendê-la dos ouvintes de outras emissoras que, com maior poderio técnico, atingia maiores segmentos, copiando justamente a Flu FM, referência e audiência a ser batida.

Pontuado deliciosamente por cartas escritas por ouvintes, que, além de divertidas, mesmo (ou principalmente) ao reclamar da programação, o filme mostra uma espécie de “caixa de comentários retrô”, só que com muito mais ironia e inteligência e menos ódio, traço de uma época que já não existe mais. A de um ouvinte que cobra o valor em dinheiro de um aparelho de rádio atirado pela janela após uma música do Sisters Of Mercy ser cortada (tirada do ar) antes do final dentro do programa “Rock Alive” é genial. O programa, apresentado por Maurício Valladares e Liliane Yusim, mostrava as novidades do rock contemporâneo e tem vários trechos de áudio resgatados no filme, realçando a leveza e a ironia que refletiam nos ouvintes.

E é MauVal uma das ausências mais sentidas como entrevistado. Ele, José Roberto Mahr, que aprece curiosamente, em uma imagem da época, no dia em que seu programa mais famoso, o “Novas Tendências” se despedia, e Luiz Antonio Mello, criador da rádio e coordenador geral da primeira fase, são os poucos da época que seguem militando no rádio e suas transformações pós mudanças tecnológicas. Outra ausência é a de Ricardo Chantilly, comandante da rádio quando a programação se voltou para o que se convencionou chamar de “surf music” (bandas australianas da década de 80 que surfistas brasileiros ouviam em suas viagens pela Austrália). Nessa fase a rádio foi premiada por três anos seguidos como a melhor cobertura do circuito mundial de surf, fato rememorado pela locutora Lia Easter.

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Foi sob o comando de Chantilly que a rádio deixou pela primeira vez o dial 94,9, ironicamente em setembro de 1994 (9/94), período que o longa cobre, embora não haja explicitamente uma linha do tempo nos cerca de 80 minutos de duração de “A Maldita”. Há também a falta de uma contextualização mais precisa quanto ao barulho causado pela chegada da rádio e a tentativa de desvendar o “enigma” de não conseguir sustentabilidade financeira, como diz Luiz Antonio no filme. Nesse sentido, não há menção, por exemplo, de qual era o posição nas listas de audiência do Ibope da Fluminense FM antes de a rádio ser convertida em rádio rock, e a qual posição chegou. Na biografia de Luiz Antonio Mello, “A Onda Maldita – Como Nasceu a Fluminense FM”, usada como fonte de pesquisa do longa, consta que saiu do último lugar para o pódio com as três primeiras mais ouvidas, em fulminante arrancada.

É do jornalista Tom Leão, que produzia e apresentava junto com André X, baixista da Plebe Rude, o programa “Hell Radio”, a fala mais relevante nesse aspecto, ao traçar um paralelo com o que acontecia para a juventude na época, ou seja, nada. Ele lembra de como qualquer evento que envolvesse a Flu FM, mesmo que fosse simplesmente a exibição de um vídeo de um show de uma banda, lotava como se fosse um o show propriamente dito. Assim como lotaram as célebres festas de aniversário, sendo que duas delas ganham especial atenção no filme. A de dois anos, em abril de 1984, em fotos de um Canecão abarrotado de gente e ouvintes sem ingressos tentando pular a cerca, e em áudios das locutoras apresentando as bandas e das próprias bandas falando com o público, incluindo Paralamas do Sucesso e Blitz. E a de três anos, com imagens sensacionais (menos pela qualidade e mais pelo registro) de Legião Urbana, Paralamas, Biquini Cavadão e Celso Blues Boy, entre outros, no não mesmo cheio Monte Líbano, em 1985 (foto abaixo).

Merece destaque ainda – e o longa é certeiro nesse ponto - o reconhecimento de que a rádio não era inovadora só pelo rock e suas revoluções adjacentes, mas pela linguagem, postura e texto, formando uma atitude que se contrapunha ao desvario da gritaria das locuções das FMs da época e que dura até hoje, seja no rádio, com os youtubers ou na febre dos podcasts. Nesse contexto, a locução, exclusivamente feminina na programação normal, uma novidade e outra ousadia da Flu FM, tem papel fundamental e é enfatizada por várias delas, incluindo as irmãs Selma e Sônia Boiron, Monika Venerabile, Mylena Ciribelli e Márcia Maria, entre outras, que gravaram depoimentos ou aparecem em cenas raras da época. Numa delas, é revelado o cuidado com que Luiz Antonio tratava o assunto, chegando a telefonar para o rádio várias vezes ao dia pra ajustar esse ou aquele detalhe.

Percebe-se que “A Maldita” é um filme feito com muita paixão e naturalmente vai fazer escorrer lágrimas dos olhos e arrancar suspiros naqueles que viveram intensamente esse período da história. Mas é também um ótimo registro que serve para as novas gerações entenderem como as coisas aconteciam em um mundo sem o protagonismo da informação e em que a música – e consequentemente o rock - tinham valor. E também para evidenciar o quão inspiradora é essa história, de como, com ousadia, inteligência e sem medo, revoluções de grande abrangência podem sair de onde menos se espera. “A Maldita” ainda deve rodar muito em outras mostras e, depois de algum tempo, até na TV e em serviços de streaming, mas há duas sessões no Festival do Rio, hoje, domingo, dia 15, e na segunda, dia 16 (detalhes nesse link).

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Comentários enviados

Apenas 1 comentários nesse texto.
  1. Rodrigo em janeiro 5, 2020 às 14:25
    #1

    Olá! Alguém sabe informar quando o filme entra em cartaz no circuito comercial? Obrigado!

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