O Rock Como Ele é

Cardápio

Por isso se sentia num daqueles domingos de Manchester retratados por Morrissey no seu primeiro grande sucesso como artista solo

Todos os dias era como se fosse um domingo. Desde que perdeu o contato de vez com a amada, era assim que pensava. Não que, no caso dele, o dia em que até Deus descansou fosse tão monótono assim. Mas havia absorvido o conceito do mundo pop, segundo o qual, vez ou outra, o domingo era tratado como um dia tedioso por definição. Sabia que o tal universo é criado a partir do imaginário adolescente, mas gostava, e – talvez por isso mesmo – se identificava. O destino não lhe fora tão generoso assim, mas não podia reclamar de ser gerente da cozinha de um dos restaurantes mais badalados da cidade. Não era, decerto, o que tinha sonhado, mas dava para o gasto. E como dava.

Todos os dias eram silenciosos e cinzas. Ao menos nas vistas dele. Cidadão de meia idade, andava pelo calçadão de Ipanema defronte a um por do sol daqueles. Mas só enxergava o cinza, pincelado pelo coração partido que não lhe dava trégua. Sabia que tinha que passar por aquela fase, espécie de aviso prévio da paixão que, mesmo duramente encerrada, cobrava aquele pesar. Pelo fato de o restaurante abrir e lotar nos finais de semana, tirava as folgas nos dias mais insólitos, o que lhe garantia uma praia, por vezes, e dependendo do clima, semideserta. Assim, era fácil que aqueles dias se parecem como os domingos retratados em prosa, verso e harmonia no mundo pop.

Não era de se esconder no calçadão. Andava para um lado e para o outro, sempre com um discman à tiracolo, onde rodavam seus discos preferidos. Era fã das novidades tecnológicas, mas, na cabeça dele, nada era mais revolucionário do que um disco gravado em CD. Adorava a clareza dos sons e a possibilidade de escutar álbuns inteiros, tal qual foram bolados pelos seus criadores. Por isso se sentia num daqueles domingos de Manchester retratados por Morrissey no seu primeiro grande sucesso como artista solo. Assim como Morrissey sem os Smiths, se sentia só sem aquela que amou intensamente. Ainda mais sabendo que o cantor falastrão passava pela cidade, 12 anos depois, e ele, por causa do trabalho, não poderia ir ao show.

Também não era do tipo que caminhava pela areia. Tampouco se bronzeava na praia. Só foi morar no bairro mais famoso da cidade mais famosa do país por exigência social do posto que ora ocupava. Não ficava bem eventualmente falar com a nata da riqueza cultural no restaurante que chamava de seu e, entre uma e outra conversa, dizer que vinha do Catete. Fazia parte da função, naturalmente não remunerada, estar entre os que recebiam generosos depósitos trimestrais das associações arrecadadoras de direitos autorais. E, a bem da verdade, ele já havia, ao longo dos anos, acumulado riqueza suficiente para alugar um apê no velho predinho da Rua Nascimento e Silva, 107.

Era uma cidade costeira que jamais seria interditada. Ele sabia disso e torcia para terminar seus pouco gloriosos dias ali. Criara um cardápio vegetariano rico em detalhes para atender a amada, mas, com a separação, decidiu – até para se livrar do passado – desistir dos pratos pouco pedidos, se comparados com os demais. Na alta madrugada de sexta para sábado, foi avisado às pressas, e, rapidamente, viu um movimento de seguranças na entrada, conduzindo o cliente para a mesa previamente reservada. Deu um safanão no maitre e foi ele próprio atender ao pedido do cidadão de Manchester mais famoso que conhecia. Sentiu orgulho do suflé de soja que inventara. Nem todos os dias eram como se fossem domingo. Muito menos aquele.

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Comentários enviados

Existem 3 comentários nesse texto.
  1. CristhinaSanthos em março 13, 2012 às 19:37
    #1

    Ai que legal. Amei. bjin

  2. Adelvan em abril 17, 2012 às 11:44
    #2

    é verdadeira, a história ?

  3. AILTON JUNIOR em julho 10, 2012 às 17:03
    #3

    NICE
    ;)

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