O Homem Baile

Punk sofisticado

Referência global do hardcore, Black Flag toca clássicos renovados por técnica e experimentação em convincente show no Rio. Fotos: Daniel Croce.

As caras, bocas e expressões corporais do ótimo vocalista da formação atual do Black Flag, Mike Vallely

As caras, bocas e expressões corporais do ótimo vocalista da formação atual do Black Flag, Mike Vallely

Já na reta final do show a banda dá uma respirada no palco quando é surpreendida por um grito que começa devagarinho, mas vai crescendo até o vocalista perceber do que se trata e incentivar de modo que vira uma palavra de ordem. “TV party tonight! TV party tonight! TV party tonight! É o que grita a turma em clima de exigência e ao mesmo tempo de que sabe o que vai acontecer nesses tempos de pouca imprevisibilidade em shows de rock. De um modo ou de outro, é assim que o Black Flag, já quase no desfecho da noite, se vê intimado a começar a sarcástica “TV Party” (pode colocar a internet no lugar da TV), na noite deste domingo (29/10), no Sacadura 184, no Rio. Sim, senhores, a espera por um show desse pilar do punk rock global por essas plagas acaba de acabar.

Intimado o modo de dizer, já que a banda tem o roteiro da apresentação bem traçado. Funciona assim. Primeiro, a íntegra com todas as nove músicas do álbum “My War”, um dos três lançados pelo grupo no prolífico ano de 1984. Depois, intervalo de uns 20 minutos como nos shows de rock progressivo. Aí então a segunda parte, com mais 17 porradas de toda a carreira da banda. Para aqueles que apontam a o grupo como cover, já que tem apenas (como se fosse pouco!) o guitarrista da formação original, principal compositor e fundador da banda e da gravadora SST, Greg Gin, a notícia boa é que o atual vocalista, Mike Vallely é ótimo, tem boa voz e presença de palco, e se encaixa muitíssimo bem no quarteto. Completam a formação os neófitos Harley Duggan (baixo) e Charles Wiley (bateria), recrutados no ano passado.

O guitarrista e fundador do Black Flag, Greg Gin, cada vez mais criativo na atualização de sua obra

O guitarrista e fundador do Black Flag, Greg Gin, cada vez mais criativo na atualização de sua obra

É o que se percebe logo de cara quando, do nada, Vallely, de costas até então, se vira para soltar o vozeirão em “My War”. Sem alarde, os quatro integrantes da banda já estavam no palco montando eles mesmos seus instrumentos, em rara demonstração do que é o “do it yourself” na prática. Daí o impacto inicial, corroborado pela simplicidade de um palco praticamente sem jogos de luz, como se as luzes permanecessem acesas durante todo o tempo. O som tocado no talo e bem equalizado detona uma gigante e intensa roda punk no meio do salão como se tivesse a urgência acumulada desde sempre pela espera sem fim pelo BF, já que essa é a primeira vez da banda no Rio. Ao vivo, e quase 40 anos depois de gravadas, as músicas parecem mais pesadas e mais bem arranjadas para uma banda ícone do punk, sim, mas jamais tosca ou primitiva.

Ao contrário. A parte final de “My War”, o disco, que corresponde ao Lado B do vinil original, até desmobiliza, por assim dizer, a agitação punk. “Nothing Left Inside”, por exemplo, tem um quê de minimalismo/improvisação jazzística - acredite se quiser -, sensação que seria percebida em outras músicas na segunda parte do show. Ou seja, Gin nunca foi simples, mas se aperfeiçoa linda e inventivamente em sua guitarra. Assim, é só na segunda parte o retorno da anarquia punk no meio do salão, notadamente em músicas como “No Values”, “Six Pack”, talvez com a maior e mais vistosa roda da noite, e, como quem não quer nada, a íntegra do EP “Nervous Breakdown”, de 1979, na abertura, com a própria e “Fix Me”, “I’ve Had It” e “Wasted” engatadas em sequência.

O bom baterista Charles Wiley, recrutado para o Back Flag somente em meados do ano passado

O bom baterista Charles Wiley, recrutado para o Back Flag somente em meados do ano passado

Teve ainda espaço para a graciosa participação de Suzi Gardner, do L7 (veja como foi o show), cantando em “In My Head”, a grudância de “Black Coffee” e aquele momento de interação público + banda citado lá em cima, em “TV Party”. O desfecho fica com a sensacional cover sem fim para a clássica “Louie Louie”, de Richard Berry, cujo riff sempre volta a ser repetido quando parece que a espécie de “improvisação calculada” se encaminha para o final. Findo o show, Greg Gin desce do palco pela frente e sai caminhando no meio do público, da maneira mais corriqueira possível, como se viesse de um acontecimento banal. Antes de todo mundo quem tocou foi o Mukeka di Rato, apesentando a renovada formação com a volta do vocalista Fepaschoal. Em cerca de 40 minutos, o quarteto mandou a hardcore sujo e tosco que lhe é orgulhosamente peculiar, mostrando várias músicas do disco “Boiada Suicida”, um dos melhores do ano passado, e clássicos do naipe de “Pasqualim Na Terra Do Xupa-cabra”, um clássico nacional.

Set list completo Black Flag

1- My War
2- Can’t Decide
3- Beat My Head Against the Wall
4- I Love You
5- Forever Time
6- The Swinging Man
7- Nothing Left Inside
8- Three Nights
9- Scream
Intervalo
10- Nervous Breakdown
11- Fix Me
12- I’ve Had It
13- Wasted
14- Jealous Again
15- No Values
16- Black Coffee
17- Gimmie Gimmie Gimmie
18- Six Pack
19- Depression
20- In My Head
21- I Can See You
22- Room 13
23- Revenge
24- TV Party
25- Rise Above
26- Louie Louie

O modo de tocar guitarra de Greg Gin nunca foi simples, mas, ao vivo, parece se aperfeiçoar sempre

O modo de tocar guitarra de Greg Gin nunca foi simples, mas, ao vivo, parece se aperfeiçoar sempre

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Comentários enviados

Apenas 1 comentários nesse texto.
  1. Leonardo Costa em outubro 30, 2023 às 23:49
    #1

    Fui eu que comecei a gritar “TV party tonight!”, hehe. Sorte que a galera acompanhou.

    Foi um sonho realizado ver uma das bandas seminais do punk no Rio, mesmo que “só” com o Greg Ginn da formação clássica. Adoraria ver o Flag (a outra versão da banda com Keith Morris, Chuck Dukowski, Dez Cadena e Bill Stevenson) aqui, mas pelo visto vai ficar só na imaginação mesmo.

    Mas valeu demais a pena encarar a chuva e o calor pra vê-los. Mike Vallely é um irmão mais novo do Henry Rollins, energia e performance muito parecidas.

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