O Homem Baile

Já foi melhor

Repertório acidentado, didatismo exagerado e decréscimo de efeitos especiais dão o tom na ‘primeira turnê de despedida’ de Roger Waters. Fotos: Marcos Hermes/Divulgação.

Com 80 primaveras, Roger Waters exibe boa forma física e vocal em turnê de despedida dos palcos

Com 80 primaveras, Roger Waters exibe boa forma física e vocal em turnê de despedida dos palcos

Um feixe de raios laser se lança sobre a multidão em efeito conhecido há décadas, mas que, ainda assim, surpreende como se inédito fosse, e arranca aplausos de uma generosa plateia. Já estamos na segunda parte da noite, e o bombardeio de efeitos especiais, exibidos em telões gigantes que cobrem até mesmo o palco e os músicos, vêm desde o início, um superando o outro. Dessa vez, de forma didática até, exibe textos durante as músicas, causando complexas reflexões para um reles show de rock. É o trecho precioso do show da turnê dita de despedida de Roger Waters, ontem (28/10), no Engenhão, no Rio, em que a íntegra do Lado B (quem lembra?) do emblemático álbum “The Dark Side Of The Moon” é tocada, deixando todos – de novo - de queixo caído, em mais uma noite para se anotar no caderninho.

No começo, não parecia que seria tão bom assim; não fundo, no fundo, nem foi mesmo. Ocorre que o danado do Waters começa o show com terrível “versão diet” de “Comfortably Numb”, subtraindo o clássico solo de guitarra, de autoria de seu eterno desafeto, David Gilmour, tido nada mais nada menos como um dos melhores da história do rock. Além do vacilo histórico - vamos e venhamos - trata-se uma forma nada impactante para se começar um show de rock. Impacto que só vem em forma de correção com “Another Brick in the Wall”, em verdadeira explosão sonora e visual, praticamente inaugurando também os quatro telões, com o tal bombardeio de informações, mais ou menos em sintonia com o teor das músicas que vão sendo apresentadas. É o primeiro momento de grande interação entre público e banda.

Bombardeio esse que, diga-se, já foi bem maior, seja na fatídica turnê de 2018, sorvida pelo Fla-Flu político da ocasião (relembre), ou mesmo no insuperável show com a integra do álbum “The Wall”, neste mesmo Engenhão, em 2012; veja como foi. O mesmo se aplica aos efeitos especiais. Não aparecem mais o avião que se estatela no muro, tampouco as animações de Gerald Scarfe, usadas originalmente por Alan Parker, ou outras referências à obra do Pink Floyd, que é o que interessa ao público. Ok, se trata de um show de Roger Waters, mas ele próprio sempre se vê como autor da obra da banda, nessa briga do rochedo com o mar. A novidade, sobretudo nas músicas recentes de Waters, é a exibição de textos explicativos em português sobre fases da banda e com análises antiguerra e pró-humanidade. Numa delas, façanhas de vários presidentes americanos são listadas, todos eles apontados como criminosos de guerra.

Em uma das encenações do show, Waters é médico de paciente debilitado em cadeira de rodas

Em uma das encenações do show, Waters é médico de paciente debilitado em cadeira de rodas

Artifício que não funciona quando Roger Waters parte para a explanação oral sobre o que significam as músicas mais recentes de sua carreira solo. É o que acontece em uma longa fala antes de “The Bar”, lançada como single há pouco mais de um ano, e pela qual ele parece bastante entusiasmado, o que é bom para um músico que completou 80 primaveras no mês passado. Ele também desenterra, nessa turnê, a “This Is Not A Drill” (algo como “não se trata de uma farsa”), a boa “The Powers That Be”, do álbum “Radio K.A.O.S.”, ausente nos shows desde o final da década de 1990. Na música realça um agressivo solo de Jonathan Wilson, que forma uma ótima dupla de guitarrista com Dave Kilminster, os mesmos que vieram ao Brasil em 2018. “Is This the Life We Really Want?” é outra boa da carreia solo, faixa-título do álbum de 2017, mas só tocada ao vivo nessa turnê.

As músicas “Pink Floyd free” são tocadas em dois blocos separados, um na primeira metade do show e outro na segunda – há um intervalo de cerca de 20 minutos -, o que revela outro problema: um set list acidentado que não faz o show engrenar do ponto de vista da interação com o público. Contemplativa ou desinteressada nas músicas de Waters, enlouquecida nos clássicos do PF, a plateia se vira como pode, por vezes aplaudindo mais as mensagens reflexivas exibidas no telão do que as músicas propriamente ditas. Aí também prevalece o que deveria ser o principal no show, mas soa como espécie de “alívio musical” ante a tanta informação: a perícia técnica e os belos arranjos com que as músicas são executadas por uma bandaça de primeira linha. Além dos citados guitarristas, com ao acréscimo vocal à Gilmour de Wilson, destacam-se a pegada precisa do batera Joey Waronker e as intervenções certinhas do saxofonista Seamus Blake.

Assim, ficou mesmo o melhor para o final, no tal lado B completo do “Dark Side”, com a banda tocando pra dedéu. Mas teve também a cantoria generalizada em “Wish You Were Here” (quem não queria ter alguém que já se foi do seu lado?); “Shine On You Crazy Diamond”; e a animada “Run Like Hell”. E teve Roger Waters atado em camisa de força numa cadeira de rodas; dois porcos e uma ovelha voando sobre o público; e fogos de artifício espocando nas laterais do palco. Inexplicavelmente para uma a turnê que sugere ser a última, foram omitidas pérolas do cancioneiro floydiano como “Mother”, “Time”, “Welcome to the Machine”, “One Of These Days”, “Summer 68” ou mesmo umazinha da fase Syd Barret, como “Interstellar Overdrive”. O desfecho é marcado por certo tom fúnebre e melancólico, quando uma das partes de “The Bar” é tocada e serve para os músicos beberem a última dose de licor e saírem em fanfarra do palco. Em suma: já foi melhor e poderia ter sido bem melhor.

Vista geral do palco de Roger Waters, que realça a proporção entre o músico e as imagens dos telões

Vista geral do palco de Roger Waters, que realça a proporção entre o músico e as imagens dos telões

Nota: A produção do show não credenciou fotógrafos dos veículos especializados e impediu que o fotógrafo da turnê fizesse fotos próximas do palco.

Set list completo:

1- Comfortably Numb
2- The Happiest Days of Our Lives
3- Another Brick in the Wall, Part 2
4- Another Brick in the Wall, Part 3
5- The Powers That Be
6- The Bravery of Being Out of Range
7- The Bar
8- Have a Cigar
9- Wish You Were Here
10- Shine On You Crazy Diamond (Parts VI-IX)
11- Sheep
Intervalo
12- In the Flesh
13- Run Like Hell
14- Déjà Vu
15- Déjà Vu (Reprise)
16- Is This the Life We Really Want?
17- Money
18- Us and Them
19- Any Colour You Like
20- Brain Damage
21- Eclipse
22- Two Suns in the Sunset
23- The Bar (Reprise)

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Comentários enviados

Apenas 1 comentários nesse texto.
  1. Nem Queiroz em outubro 29, 2023 às 19:03
    #1

    Talvez a melhor resenha sua sobre um show tão complexo! Parabéns. Seu fã de sempre, NemQueiroz

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