O Homem Baile

Passou o rodo

Ratos de Porão rouba a cena com ótimo show no Kool Metal Fest, em noite de ‘macumba pra turista’ da Gangrena Gasosa. Fotos: Daniel Croce.

O vocalista do Ratos de Porão, João Gordo, intrigado com a renovação do público no Circo Voador

O vocalista do Ratos de Porão, João Gordo, intrigado com a renovação do público no Circo Voador

É o inesperado desfecho do show de uma das maiores bandas de hardcore de todos os tempos, mas, em um tema clássico, o guitarrista imita um scratch nas cordas, a banda simula uma batida de rap, e o vocalista, de humor não tão bom assim, debocha de si próprio meio que narrando a letra da música conhecida de todos. Já faz tempo que o Ratos de Porão apresenta assim o início de “Aids, Pop, Repressão”, antes de o coro hardcore comer sem dó. Mas é a primeira vez que o show deles termina assim, meio sem querer, na noite da última sexta (25/8), no Circo Voador lotado, na abertura para o Brujeria (veja como foi), que o Ratos atropelou sem dó nem piedade. Com maior quantidade de público, inclusive.

Com repertório renovado depois de algumas turnês de aniversário e de íntegra desse ou daquele disco, o grupo se sai muito bem mostrando três músicas do novo álbum, “Necropolítica”, o disco do ano de 2022, que, como de hábito na trajetória do Ratos, faz uma polaroide do Brasil. E todas cantadas pela plateia como se clássicos fossem, com destaque para “Aglomeração”, logo no início. Também inclui outras três do EP “Isentön Päunokü”, outro de 2022, que faz uma espécie de farra fonética ao traduzir versões em português para músicas da banda finlandesa Terveet Kädet, da qual a banda é fã. Essas, de tão ligeiras, passam batido no meio do salão, em meio a uma agitação sem fim, a maior de toda a noite e - repita-se -, com o maior público dessa edição do Kool Metal Fest, já que muita gente não ficou para ver a atração de fundo.

O guitarrista Jão tocando sujo há mais de 40 anos e mostrando os caminhos para o Ratos de Porão

O guitarrista Jão tocando sujo há mais de 40 anos e mostrando os caminhos para o Ratos de Porão

Há também outras novidades no set list, como a inclusão de músicas que nem sempre vinham sendo tocadas nos últimos shows do Ratos, como, por exemplo, “Ignorância”, “Descanse em Paz” e “Morte ao Rei”, na qual Gordo cita a inelegibilidade do inominável, para delírio do público. Assim, deixaram o show outras músicas, como “Plano Furado”, Suposicollor”, “Diet Paranóia”, e o grande hit deles, como se isso fosse possível, “Sofrer”. Tudo tocado com a precisão usual, na velocidade impingida pelo incansável baterista Boka, que segue um dos melhores no ramo, e com Jão realmente inspirado em solos sujos como o tipo de música pede, além da distorção usual, com o som alto pra dedéu. Aí cabe a Gordo se virar para acompanhar e se fazer entender, mas esse é um terreno bem conhecido por ele.

O que chama a atenção é que o público que lota o Circo Voador parece bem renovado, o que é ótimo, mas resulta em certos comportamentos equivocados, por assim dizer, e causa algum incômodo no vocalista. “Quem aqui está vendo o show do Ratos pela primeira vez?”, ele pergunta, de modo incomum, para ver mais ou menos metade responder afirmativamente e disparar: “bando de cabaços do caralho!”. Gordo percebeu um tipo de público subindo ao palco não pelo prazer do mosh em si, mas como se não houvesse conexão alguma com a música e o estilo de vida que ele prega/defende há mais de 40 anos. É como se fossem turistas indo ao zoológico tirar foto ao lado dos animais, em cima do palco implorando para ajudarem a descer sem saber qual música estava sendo tocada, ou mesmo gravando a ação com o aparelho emburrecedor em punho. Talvez por isso as três últimas músicas do repertório tenham sido limadas, incluindo o tradicional encerramento com “Crise Geral”, tarefa que ficou mesmo com a dobradinha “Beber Até Morrer” e a preciosa “Aids, Pop, Repressão”, na versão citada lá em cima. Mesmo assim, um showzaço do Ratos.

O baixista do Ratos de Porão, Juninho, grande saltador durante o show do Circo Voador

O baixista do Ratos de Porão, Juninho, grande saltador durante o show do Circo Voador

Além deles, a Gangrena Gasosa, segunda banda a tocar no festival, também teve uma incrível adesão por parte do público, superando, e de muito longe, o Brujeria. Aí o quesito “novas gerações” é decisivo, já que hoje, com um olhar menos preconceituoso da sociedade como um todo para as religiões de matriz africana, o saravá metal do grupo ocupa um espaço generoso nessa turma. E ainda conta a mistura inusitada de ritmos – metal com batucada, forró e ponto de macumba, por exemplo –, quase um padrão nesses tempos tão estranhos que soterra a segmentação da música pesada sem o menor constrangimento. É de micareta metálica que esse povo gosta!

Assim, agradam muito a recente “Kizila”, faixa-título do EP de 2020, espécie de hardcore com repente e coco; a já clássica e sempre atual por impagável “Eu Não Entendi Matrix; e curiosamente “Centro do Picapau Amarelo”, que parece não fazer muito sentido nesses tempos, mas enlouquece todo mundo no verso “Emília Pomba-Gira é uma boneca de vodu”, gritado a plenos pulmões. Musicalmente a banda está bem resolvida e ensaiadinha, em que pese o uso exagerado da percussão, em quase todas as músicas. Faltaram “Se Deus é 10, Satanás é 666” e “Pegue Santo or Die”, mas teve “Surf Iemanjá”, dedicada às mulheres e, por incrível que pareça, “Headbanger Voice”, quase uma piada interna de tempos passados.

Um dos vocalistas da Gangrena Gasosa, o impagável Angelo Arede, travestido de Zé Pelintra

Um dos vocalistas da Gangrena Gasosa, o impagável Angelo Arede, travestido de Zé Pelintra

Tem pipoca jogada pra cima do público, tem o figurino de entidades de cada um dos integrantes, como de hábito, mas, talvez por não ter ninguém da formação original, o show carece da sujeira underground que caracterizava a Gangrena. Parece tudo limpinho demais, produzido demais, tipo “batucada (ou no caso macumba) pra turista”. Tudo é divertido e engraçadinho demais, ainda que a diversão e o deboche intrínseco à banda e ressaltado nas tiradas do vocalista Ângelo Arede, o Zé Pelintra, sejam uma característica do grupo há muitos anos. Nada, contudo, que tenha comprometido a ótima interação entre público, jovem ou rodado, e banda, num show bem convincente.

Tudo começou ainda mais cedo com o Velho, de Duque de Caxias, que recebeu um ótimo público, considerando o horário em que a banda tocou. As duas cruzes invertidas no meio do palco e o corpse paint usado pelos quatro integrantes denunciam o black metal no qual o grupo investe. A novidade, por assim dizer, é que as letras das músicas são em bom português, algo incomum no meio. Em cerca de meia hora a banda mandou 10 sons, todos repletos do peso, velocidade e conceito minimalista inerente ao gênero. Destaque para “A Mesma Velha História”, que detona as primeiras rodas de pogo da noite; “Coma Induzido”, de instrumental rebuscado e que tem a participação de uma ex-integrante na guitarra; e “Cadáveres e Arte”, espécie de hit deles, reconhecida pela plateia.

O guitarrista Minoru Murakami (Exu Caveira) e o outro vocalista, Davi Sterminium (Omulú)

O guitarrista Minoru Murakami (Exu Caveira) e o outro vocalista, Davi Sterminium (Omulú)

Set list completo Ratos de Porão

1- Alerta Antifascista
2- Aglomeração
3- Amazônia Nunca Mais
4- Farsa Nacionalista
5- Ignorância
6- Lei do Silêncio
7- Morte ao Rei
8- Necropolítica
9- Crucificados Pelo Sistema
10- Descanse em Paz
11- Fei e Burro
12- Fuder a Empregada
13- Rösca Sölta
14- Morrer
15- Guerrear
16- Políticos em Nome do Povo
17- Caos
18- Realidades da Guerra
19- Difícil de Entender
20- Engrenagem
21- Toma Trouxa
22- Expresso da Escravidão
23- Conflito Violento
24- Beber Até Morrer
25- Aids, Pop, Repressão

Angelo Arede, o baixista Diego Padilha (Tranca Rua) e no fundo o baterista Alex Porto (Exu Tiriri)

Angelo Arede, o baixista Diego Padilha (Tranca Rua) e no fundo o baterista Alex Porto (Exu Tiriri)

Set list completo Gangrena Gasosa

1- Rei do Cemitério
2- Encosto
3- Surf Iemanjá
4- Black Velho
5- Devorador é o Diabo
6- Boteco Teco
7- Quem Gosta de Iron Maiden Também Gosta de KLB
8- Afirma Seu Ponto
9- Headbanger Voice
10- Kizila
11- Eu Não Entendi Matrix
12- Fiscal de Cu
13- Centro do Picapau Amarelo
14- O Saci

Vista geral do palco do Velho, banda que abriu o Kool Metal Fest já com um bom público no local

Vista geral do palco do Velho, banda que abriu o Kool Metal Fest já com um bom público no local

Tags desse texto: , ,

Comentários enviados

Existem 2 comentários nesse texto.
  1. Leonardo Costa em agosto 27, 2023 às 23:51
    #1

    Bragatto, uma correção: no texto você diz que eles não tocaram Morrer, mas tocaram sim e está inclusive no setlist que foi postado abaixo. Talvez você quisesse dizer Sofrer e se confundiu.

    Já sobre a interação do Gordo com o público mais novo chamando-os de cabaços: foi mais uma tiração de onda mesmo que uma crítica a quem talvez não entenda o show. E nada que desabone a performance deles, continuam a máquina de sempre. Realmente faltou Crise Geral fechando, mas deve ter sido por não serem a banda principal da noite, tinham horário pra entregar o palco e tal, essa burocracia de evento.

    Fazia tempo que não via o Gangrena, era outra formação totalmente diferente. Concordo que as mudanças eternas deles mudaram um pouco (ou muito) o que era a banda nos últimos anos, se tornaram mais ‘consumíveis’ que antes e os últimos trabalhos foram nessa linha, principalmente após o racha do Ângelo com os antigos. Mas enfim, agora a banda é dele e toma os rumos que ele quiser.

    Já sobre o Velho: showzaço, nunca tinha visto e achei sensacional. Não gosto de black metal, mas me prenderam a atenção justamente por cantarem em português e não se desprenderem do hardcore cru e seco das raízes do gênero. O baterista Thiago Splatter é uma máquina, fica a menção.

  2. Marcos Bragatto em agosto 28, 2023 às 10:43
    #2

    Corrigido, Leonardo. Obrigado.

Deixe o seu comentário

Seu email não será divulgado