O Homem Baile

Entidade viva

Glenn Hughes comanda show avassalador e reafirma a força de uma das épocas mais férteis do rock, quando ele e David Coverdale davam as cartas no Deep Purple. Fotos: Cleber Junior.

Glenn Hughes empunha o baixo com empolgação no início de seu maior show recente no Brasil

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Depois de duas horas de som pauleira em volume generoso de fazer ouvido zumbir até o dia seguinte, os músicos da banda, antes de partir para um agradecimento com o tradicional tronco curvado na beirada do palco, optam por um abraço coletivo no vocalista, baixista e entidade rock’n’roll ambulante. Antes, ele mesmo, no centro do palco, coberto de feixes de luz, encerra um clássico do rock em todas as épocas que versa sobre ser emocionalmente maltratado, em um espetáculo de malabarismo vocal com todos os timbres e alcances imagináveis, para encanto não só da plateia, mas também dos mesmos músicos que assistem a isso noite após noite. Glenn Hughes. Deep Purple. Circo Voador jorrando gente pelo ladrão. Não tinha como dar errado.

Mas não pense que foi fácil. Antes de chegar ao estado pleno, total, cósmico até, que se viu na noite deste domingo (29/4), Hughes passou por poucas e boas na Cidade Maravilhosa. Viu passeio de barata em uma casa subdimensionada para uma lenda como ele, tocou em outra em que a lotação máxima é proibida por lei, mas sempre com apresentações à sua altura (relembre aqui e aqui) e sem perder a ternura jamais. E, esperto, descobre que tudo muda quando um nome aparece nos cartazes: Deep Purple. Daí a adesão do público crescer sensivelmente para ver, ao vivo, a fase sensacional em que David Coverdale e Glenn Hughes davam as cartas na banda, o que inclui três álbuns seminais para o rock e para eles próprios: os geniais “Burn” e “Stormbringer” (ambos de 1974, dá para imaginar?), e “Come Taste the Band” (1975), o que não é pouco.

Há 10 anos nas turnês de Glenn Hughes, o guitarrista Soren Andersen segue debulhando as cordas

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Ocorre que – e um olhar de antemão no set list lá embaixo engana – as músicas não são simplesmente tocadas como aparecem nos álbuns, mas ganham vida em cima do palco, através do feeling de um artista extraordinário que não impõe limites a si próprio e deixa a coisa fluir, o que resulta em grande envolvimento dos músicos que o adornam. Por isso “Mistreated”, usualmente o ponto alto do show, ganha ares de renovação com espécie de improviso instrumental e uma transição de volta à música excepcional, contendo ainda um belo solo do guitarrista Soren Andersen, que acompanha Hughes pelos palcos do mundo já há uns 10 anos. “You Fool No One”, se tem a bateria genial de Ian Paice reproduzida com maestria pelo chileno Fer Escobedo, o caçula da turma, é acrescida de solos do tecladista Jay Boe, agarrado ao seu Hammond, e do próprio baterista – esse menos inspirado, diga-se -, no intuito, indica Hughes, de reviver momentos da performance do Deep Purple no California Jam de 1974, megafestival que inaugurou a formação com ele e Coverdale para o mundo, a chamada MK III.

Recordar é viver é a senha para ser feliz em uma noite como essa, e é praticamente impossível, cara a cara com um show desse naipe, não imaginar os integrantes das respectivas formações originais. Por exemplo, ao ver Glenn Hughes cantando com justa afinação as partes mais graves de “Might Just Take Your Life”, é o rosto de David Coverdale que surge sobre o pescoço dele, como espécie de “photoshop da mente ao vivo”. Quando Boe desanda a solar no Hammond (ok, com um mixer acoplado), impossível não lembrar de Jon Lord balançando o modelo que o consagrou pra frente e para trás. Hughes menciona o próprio Lord, em “This Time Around”, e vai mais longe ao afirmar que o guitarrista Tommy Bolin, obscurecido pela morte precoce com apenas 25 anos, nunca morreu, mas segue ao seu lado, e a cena sugere um contato extra corporal que é a cara do músico. A citação antecede “Gettin’ Tighter”, que reaparece em uma versão da pesada em que a ordem de grooves, riffs e solos não altera o produto, com uma debulhagem completa, não em única vez, de Andersen.

Com a missão de relembrar Jon Lord no California Jam de 1972, o tecladista Jay Boe se sai bem

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Metafísico - repita-se - e mais ainda do que antes, Glenn Hughes não para de falar de entrega, de coração, de alma. “Vocês conseguem sentir?”, indaga volta e meia, enigmático, mas com a resposta total do público. “Pois saibam que eu estou olhando para cada um que está aqui e estou cantando individualmente para cada um de vocês”, completa, entre outras sacadas semelhantes. O repertório, curto em quantidade de músicas, inclui ainda duas da fase do Purple com Ian Gillan nos vocais. Afinal, se é Deep Purple tem que ter “Smoke On The Water” - o groove de Hughes faz toda a diferença, valeu pela composição, Roger Glover -, que aparece com uma breve citação ao standard “Georgia on My Mind”, e “Highway Star”, quando um roadie assume o baixo e o carismático Gleen Hughes se converte em inacreditável frontman saltitante, já dentro do bis. Só resta, então, ao técnico de som, girar o botão do volume sem dó, com efeito enlouquecedor sobre a massa.

Com duas horas de duração e devoção de parte a parte, o show é o mais longo de Glenn Hughes por essas plagas, mas não há como não notar ausências do tamanho de “Lady Double Dealer”, “Lay Down, Stay Down” e “Soldier of Fortune”. E é duro imaginar que, além desse projeto em que toca pela primeira vez clássicos do DP, Hughes tem um ótimo álbum de inéditas para mostrar (“Resonate”, de 2016); voltou à ativa com o Black Country Communion (com Joe Bonamassa, Jason Bonham, o filho do Homem, e Derek Sherinian), com quem lançou o quarto disco no ano passado; não descarta outros grupos como o ótimo California Breed; e (ufa!) forma o trio que gravou o novo trabalho do guitarrista Joe Satriani, “What Happens Next”, junto com o baterista Chad Smith, do Red Hot Chili Peppers, lançado em janeiro. Devaneios que seguramente não passam pela cabeça de quem está ali na frente do palco do Circo Voador se esgoelando, tal qual o próprio Glenn Hughes, em uma versão magistral de “Burn”, no desfecho mais que perfeito de uma noite e tanto. É, não tinha como dar errado mesmo. E não deu.

O bom baterista chileno Fer Escobedo, o caçula da turma, com potencial pra incrementar mais o solo

O bom baterista chileno Fer Escobedo, o caçula da turma, com potencial pra incrementar mais o solo

Set list completo:

1- Stormbringer
2- Might Just Take Your Life
3- Sail Away
4- Mistreated
5- You Fool No One
6- This Time Around
7- Gettin’ Tighter
8- Smoke on the Water/Georgia on My Mind
9- You Keep on Moving
Bis
10- Highway Star
11- Burn

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Comentários enviados

Apenas 1 comentários nesse texto.
  1. Rafael em maio 1, 2018 às 14:25
    #1

    Grande texto, Bragatto. Show espetacular desta entidade boba, como você bem definiu. Só discordo um pouco em relação ao guitarrista, o achei muito fritador e com pouca classe. Tem que ter classe pra tocar esses clássicos. Parabéns pelo excelente texto!

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