O Homem Baile

Lição de punk rock

Com o Professor João Gordo no comando, Ratos de Porão repassa repertório do álbum “Feijoada Acidente?” a limpo no Circo Voador. Fotos: Nem Queiroz.

Se fazendo entender: João Gordo canta desgovernadamente ao lado do esforço do guitarrista Jão

Se fazendo entender: João Gordo canta desgovernadamente ao lado do esforço do guitarrista Jão

Era para ser uma festança daquelas, e foi. O plano, embora nem todo mundo no meio do salão do CircoVoador soubesse, era o Ratos de Porão tocar a íntegra dos álbuns “Feijoada Acidente?”, nas versões nacional e internacional, que completam este ano o aniversário de 20 anos do lançamento. De um total de 41 músicas, “apenas” 25 foram incluídas no set, e não necessariamente na ordem em que aparecem no CD, mas separadas em pequenos blocos de três, quatro músicas cada um. Se, na época, o disco era um resgate do punk rock com requintes de fina pesquisa na conta de João Gordo, agora o que se vê é uma verdadeira aula de punk rock, ao vivo, com o Professor Gordo fazendo as vezes de Jack Black em “Escola de Rock”.

Relembre-se que a ideia e o título do disco já nasceu como uma tiração de sarro do Guns N’Roses, que havia lançado, dois anos antes, um disco de covers chamado “The Spaghetti Incident?”, com a foto de uma macarronada estampada na capa. Daí veio o “Feijoada Acidente?”, com a sutil imagem de ratos boiando em uma feijoada. Na parte nacional, muitas bandas eram conhecidas do público, mas na internacional, coube ao sempre antenado João Gordo fazer a busca sem Google e vomitar tudo em forma de Rato de Porão. Ou seja, além de o Ratos contar a Historia do Brasil em suas letras ao longo de décadas, ainda nos dá uma lição de punk rock de raiz, de todos os cantos do Brasil e do mundo.

João Gordo, o nervoso baterista Boka e o baixista Juninho durante o show do Ratos de Porão

João Gordo, o nervoso baterista Boka e o baixista Juninho durante o show do Ratos de Porão

Nada custoso para um Gordo que parece felicíssimo com a empreitada e vibra ao explicar quem é o Circle Jerks, antes de iniciar “Red Tape”, ou quando mostra apreço pelo ícone punk Mao, ao anunciar a genial “Papai Noel”, do Garotos Podres. Antes de “Catholic Boy”, do seminal Dead Boys, por conta de uma afinação de instrumentos, Gordo detona tudo o que é político de esquerda e de direita, como bem manda a anarquia punk, mas alerta o público quanto aos perigos do crescimento da extrema direita no Brasil, que costuma perseguir minorias como as que vão a shows de rock como esse. É quando pela primeira vez o empurra-empurra das rodas punk cessa para o franco aplauso ecoar sob a lona do Circo. Anarquista, sim; burro jamais.

Algumas músicas são mais conhecidas que as outras, mesmo porque fizeram parte do repertório dos shows da época ou seguem no set list do Ratos até hoje. Caso de “O Dotadão Deve Morrer”, do Cascavelletes, e de “John Travolta”, do AI-5, cantadas a pleno pulmões pelo povão. Entre as internacionais, as que mais têm respostas da plateia são “Fuck Off and Die”, do Chaotic Dischord, com letra literalmente minimalista e, portanto, fácil de cantar, e “Raped Ass”, do Anti-Cimex. De outro lado, ausências notáveis de parte a parte são “Yeah Yeah Yeah!”, do The Vibrators; “Big Women”, do GBH; e “Tô Tenso”, da Patife Band. O guitarrista Jão diz que a banda não ensaiou direito, mas a vibe é tão boa que não é o que parece. Como de hábito, o perseverante baterista Boka aplica uma correria danada, e os outros é que se virem para acompanhar, incluindo Gordo, o vocalista de hardcore que melhor se faz entender em todos os tempos, mesmo quando não se faz entender.

Gordo se diverte com o guitarrista Jão, que chegou a dizer que o repertório não foi muito ensaiado

Gordo se diverte com o guitarrista Jão, que chegou a dizer que o repertório não foi muito ensaiado

Sabe-se lá se atendendo aos reclames do público pelos clássicos do RPD, o fato é que, no final, já no bis, são incluídos cinco deles, que, em princípio, não estavam no set list afixado no palco. É a hora do sprint final na alta madrugada e o coro come sem dó, como se fosse o bloco de abertura, e tudo tocado – de novo – em uma velocidade cavalar; e pensar que o Krisiun já havia devastado meio mundo ali naquela palco um pouco mais cedo (veja como foi). Aí, sim, tudo é cantado, vomitado e cuspido com toda a força do mundo. De “Crucificados Pelo Sistema”, um bem inalienável do cancioneiro punk nacional, passando por “AIDS, Pop, Repressão”, até a pérola de música e letra que é a heavy-metálica “Crise Geral”, retrato borrado do povo brasileiro, tudo parece lindo demais para ser verdade. Mas é. É Ratos de Porão no Circo Voador.

Set list completo, com as bandas que gravaram as versões originais entre parênteses:

1- Câncer (Hino Mortal)
2- Olho de Gato (Olho Seco)
3- Lobotomia (Lobotomia)
4- Red Tape (Circle Jerks)
5- Pure Hate (Poison Idea)
6- Private Affair (The Saints)
7- O Dotadão Deve Morrer (Cascavelletes)
8- Desemprego (Fogo Cruzado)
9- Medo de Morrer (Inocentes)
10- Bad Guy Reaction (Rezillos)
11- Spräckta Snutskallar (Shitlickers)
12- Raped Ass (Anti-Cimex)
13- Papai Noel (Garotos Podres)
14- John Travolta (AI-5)
15- Buracos Suburbanos (Psykóze)
16- Catholic Boy (Dead Boys)
17- Police Story (Black Flag)
18- Insight (Dead Kennedys)
19- A Bomba (Ratos de Porão)
20- Não Podemos Falar (Ratos de Porão)
21- Só Pensa em Matar (Ratos de Porão)
22- Corrupção (Ratos de Porão)
23- Kität on Natisisikoja (Kaaos)
24- Fuck Off and Die (Chaotic Dischord)
25- Out of Order (Disorder)
Bis
26- Direito de Fumar (Ratos de Porão)
27- Nós Somos a Turma (Ratos de Porão)
28- Crucificados Pelo Sistema
29- Beber Até Morrer
30- Aids, Pop, Repressão
31- Realidades da Guerra
32- Crise Geral

Plano geral do show do Ratos de Porão no Circo Voador, com o público vibrando no 'gargarejo'

Plano geral do show do Ratos de Porão no Circo Voador, com o público vibrando no 'gargarejo'

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