Som na Caixa

Circo Voador – A Nave
Maria Juçá

(Livro/Independente)

circovoadoranaveUm livro que termina exatamente na página 666 com uma foto com dois braços erguidos em meio a uma multidão fazendo um misto de chifrinho do metal com “hang loose” não pode ser ao acaso. É assim que se encerra o tijolaço escrito por Maria Juçá, no intuito de contar a história do Circo Voador. Juçá, para não quem sabe, foi uma das produtoras do Circo já no início dos anos 1980. Depois do fechamento ilegal da casa que revelou o rock brasileiro da época, batalhou duramente para ter o Circo de volta, o qual administra até hoje. Como não é escritora e nem se apóia em ghost writers, usa de um texto leve e fluente para discorrer sobre uma verdadeira biografia de uma instalação concreta, como se fosse a sua própria história. E, no fundo, no fundo, é mesmo.

Tanto que, muitas vezes, o texto muda de rumo e se concentra em questões pessoais da autora, sobretudo nos tempos em que esteve fora do Circo, quando fez das suas no Parque Lage, na fase Arpoador, quando não havia iniciado o trabalho por lá, ou mesmo em um resumão corrido das manifestações de junho de 2013, que parece ter sido feito às pressas, já perto do fechamento do livro, lançado em 2014. A melhor parte é de longe a que conta os primeiros anos do Circo, com dificuldades terríveis e histórias impagáveis por trás dos shows de bandas de rock iniciantes que começavam a mostrar a cara para esse Brasilzão. Não espere resenha jornalística ou comentários de shows, mas todo o esforço que se fazia para a coisa funcionar, com pouco ou nenhum dinheiro e muita crença no que propunha a realizar.

São histórias por trás dos shows, mas não de bastidores fakes, como se vê hoje na enxurrada de documentários que ser tornaram obrigatórios no mundo pós-DVD e “fotinha em rede social”. Então surgem personagens que parecem de ficção, como um guardador de carros que morava no Circo e, vez ou outra, agiotava os produtores, sempre em dificuldades financeiras. Ou o artista morador de rua que também foi morar dentro do Circo Voador e se notabilizou durante anos por cuspir fogo sobre o público nos shows de Vid & Sangue Azul. A história do cofre roubado, cuja fortuna era de bilhetes destacados, ou mesmo a dificuldade de sair do local na alta madrugada de uma Lapa vadia daquele tempo, não turística como hoje, com a féria do final de semana. Por vezes, pode até parecer piada interna – e é -, mas não deixa de se de interessante leitura.

Também porque a generosa Juçá abre espaço para outros contadores de história, e aí o produtor Alexandre Rossi, o Rolinha, cuja descrição da autora expõe uma relação de amor e ódio, deita e rola, com textos impagáveis sobre situações das mais difíceis, hoje convertidas em causos engraçadíssimos. Como o dia em que foi parar na delegacia com os integrantes do Pavilhão 9, e o público lá, esperando a banda. Ou atuando firme na missão de desfazer um mal entendido financeiro com Ângela Rô Rô. Rolinha precisa seguir escrevendo esses textos, nem que seja em um blog chulé da web. Juçá também pegou inúmeros depoimentos de artistas, muitos usados inclusive no filme “A Nave” (saiba mais), e também traça perfis de nomes que já nos deixaram, em situações cotidianas, seja em um almoço com Raul Seixas ou em conversas no apartamento de Renato Russo.

Em toda a narrativa a autora enfatiza certa apologia à loucura e aos doidões em geral, tidos como aqueles que colocam as sociedades pra frente. É o que explica, de certo modo, como uma instalação improvável como o Circo Voador tenha vingado, principalmente nos anos pré-fechamento ilegal. O que instala a dúvida no leitor: seria assim mesmo? Ou há excessos comuns às biografias, no sentido romântico de se enxergar a história? De qualquer forma, Juçá também relata que o único economista que se dispôs a dar um jeito na administração/finanças do Circo logo desistiu sob um curioso diagnóstico: “Deixa assim mesmo que funciona desse jeito”. Sábias palavras. O livro, parrudo, soma mais de 700 páginas com os anexos, e inclui encarte com fotos e cartazes/filipetas de todas as épocas.

Contada a história, a narração perde o fôlego ao se aproximar dos nossos tempos. É quando o texto basicamente passa a falar sobre artistas de renome e projetos com mais entorno do que conteúdo. O que revela como há pouco rock e quase nenhum espaço para as novas bandas no Circo Voador pós 2004. Já na primeira parte momentos marcantes como o show de reabertura do Circo, com o Krisiun, passaram batido. Da mesma forma, saudosas parcerias como as de Sepultura (a banda brasileira mais bem sucedida no exterior) + Dorsal Atlântica + Ratos de Porão; Cólera + Plebe Rude; Violeta de Outono + Replicantes; e o histórico show de Buddy Guy, entre outros, caíram em um imperdoável esquecimento. Do meio pro fim, o que fica de fora são os shows internacionais de rock e metal de médio porte, como os de Napalm Death, Nightwish, Bad Religion e a histórica noite do Cannibal Corpse + Gangrena Gasosa, em meio a bombas e gás de pimenta, em pleno auge das manifestações de junho de 2013 (relembre). Fora tantos outros que não podem ser realizados no Circo por causa dos altos custos das novas instalações, como alegam muitos produtores.

Nesse quesito, o livro se apega apenas ao projeto indie “Queremos”, de curadoria pessoal e excludente, que, à sua maneira, subverte a ordem mercadológica, para o bem ou para o mal. O que, vamos e venhamos, é pouco. Se Maria Juçá, que afinal de contas criou o “Rock Voador” na década de 1980, não atua tanto na linha de frente (a moça merece descanso!), a equipe de produtores que está no comando seguramente não tem interesse em revelar o novo rock como o Circo fazia no passado. É fácil perceber a empolgação nas redes sociais oficiais quando um show é anunciado, e, comparativamente, o descaso quando se trata de um evento de rock. Se a própria Juçá relata textualmente nesse livro que artistas hoje consagrados, no início, recebiam públicos ínfimos, e quem pagava o prejuízo eram atrações já consagradas, em noites lotadas, por que não seguir essa cartilha? As bandas estão aí aos montes, e o Circo não pode ficar debruçado no peitoril da janela vendo a revolução passar na vizinhança.

É bonito ouvir uma banda dizer que sempre sonhou tocar no Circo Voador, mas pisar naquele palco sagrado precisa ser uma realidade. E simplesmente não é possível o Circo não realizar, anualmente, um festival de bandas independentes que pertença ao circuito nacional, como acontece há muitos anos em capitais de menor densidade demográfica como Goiânia, Natal, Brasília e Recife, entre tantas outras, e nem vamos entrar no interior do País propriamente dito. Contada a história, e “Circo Voador - A Nave” é indispensável como um verdadeiro manual de como fazer e acontecer, o jogo tem que seguir. A tal página 666, simbólica, precisa sair do papel. Vamos, Circo Voador, bola pra frente que o rock não pode parar!

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Comentários enviados

Apenas 1 comentários nesse texto.
  1. Fabio em novembro 3, 2015 às 10:18
    #1

    Comprei esse livro lá no Circo no dia de um show do Ira!… Fiquei na dúvida entre esse livro e a bio do Nasi, acabei levando “A Nave”. Concordo que no final ele fica meio chato. Parece ate release de assessoria de imprensa.
    Mas os relatos do Rolinha já valem a leitura!

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