O Rock Como Ele é

Realização

O álbum duplo gravado em Osaka era considerado o melhor dos anos 70 por muita gente, e ele o conhecera pela fantástica introdução de “Smoke On The Water”, num fone de ouvido que um playboy lhe colocou na cabeça ainda nos tempos de segundo grau.

Não era sempre que ficava on line. Ou, por outra, ficava o tempo todo conectado, mas, no msn, gostava de escolher a opção off line, ou, nas versões mais modernas da engenhoca mais usada no mundo virtual desde o icq, invisível. Assim poderia saber quais dos seus contatos estariam disponíveis, sem que outros, com os quais não queria conversa, soubessem de sua tocaia virtual. Isso porque, com vergonha de negar novas adições, aceitara mais contatos do que conseguia gerenciar, considerando o tempo escasso para o trabalho e para a diversão. Não havia dividido os amigos em grupos, como sugeria o programa, mas tinha, sim, essa separação dentro da cabeça.

Diversão, para ele, era sinônimo de rock’n’roll. Desde cedo o garoto fora arrebanhado pelo gênero que era para sempre associado à juventude, rebeldia, atitude, postura e outros vocábulos usados por pessoa influentes no meio ao dar depoimentos para aqueles documentários exibidos na TV à cabo de tempos em tempos. Não sabia o porquê, mas tinha a certeza dos convencidos de que, sem o rock, ele nada seria, muito embora pagasse as contas com um emprego modesto no comércio popular. Talvez se sentisse injustiçado pelo que a vida lhe ofertara até então, apesar de ter concluído a faculdade de contabilidade mais cedo que a média dos rapazes de sua geração. E o rock sempre adorou rebeldes, pensava.

Poderia ter mudado o status para on line, já que, naquele momento, aguardava ansiosamente que o lento computador terminasse de baixar o clássico “Made In Japan”, do Deep Purple. O álbum duplo gravado em Osaka era considerado o melhor dos anos 70 por muita gente, e ele o conhecera pela fantástica introdução de “Smoke On The Water”, num fone de ouvido que um playboy lhe colocou na cabeça ainda nos tempos de segundo grau. Mas, por conta da dureza desses tempos, não havia, ainda, comprado o disco. Demorou tanto que agora poderia baixar, e de graça. Mesmo que não gostasse do pífio som do mp3 nas caixinhas furrecas do computador, naquele momento parecia perfeito para ele.

Mesmo off line, recebeu um chamado da pequena que sabia do artifício por hora adotado. Achou que devesse responder, mas, pensando bem, não precisava, já que ela jamais saberia que estava ali, vendo tudo. Uma grande vantagem do mundo virtual, pensava. E nem considerava grave ignorar a moça que dele tanto gostava; era como o telefone tocar e ele não atender, se essa história fosse contada uns dez, quinze anos antes. Ainda assim, viveu um pequeno momento “should I stay or should I go”. Não era a pequena uma figura desagradável – muito ao contrário. Olhava, no entanto, para a contagem regressiva da caixa do windows e fazia as contas. Concluía que o papo com a moça duraria mais que os minutos que faltavam, o que inviabilizaria a resposta ao simpático “oi, tudo bem?”.

Não sabia por que, mas, àquela altura, precisa mais dos riffs de Ritchie Blackmore e dos gritos agudos de Ian Gillan do que da atenção e dos carinhos da postulante, sabe-se lá a que. Ao mesmo tempo, tinha passageiras crises de consciência ao avaliar prós e contras de uma coisa ou de outra. Não sabia explicar, tampouco, o porquê de querer mais, naquele momento, o reencontro com o “Made In Japan” do que o papo com a pequena. Era como se tivesse que tomar uma decisão enquanto os minutos da contagem regressiva o fazia lembrar-se de um álbum da fase de ouro do Megadeth. De repente, a decisão. Saiu do msn, descompactou o arquivo já baixado, gravou tudo num CD de um Real e colocou no CD player, conectado ao amplificador - e este, às caixas de som - em volume generoso. Estava, de novo, realizado. Graças ao rock.

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