O Rock Como Ele é

Recomeço

Lembrava disso quando, súbito, as caixas de som jogavam em seus ouvidos, de supetão, a introdução de “YYZ”, uma porrada daquelas com instrumental denso e carregado que só poderia sair das cabeças e do esforço físico dos três loucos do Rush.

Havia casado cedo demais, mas demorou muito para se separar. Pensava nisso quando adentrava, depois de muito tempo, no bar que resistia à ação do tempo e continuava a ser o point rock da cidade. Mas as pessoas, em princípio, não eram mais as mesmas, afinal, muito tempo se passara, e ele, a essa altura, se lamentava de ter ficado tanto tempo ao lado da mulher para a qual havia jurado amor eterno na frente do sacerdote. Não queria pensar nisso, mas se sentia totalmente peixe fora d’água justamente no lugar onde passou boa parte de sua juventude.

Não que fosse tão velho assim. Bem apessoado, aparentava idade inferior à que o documento de identidade mostrava, embora não acreditasse ser isso uma vantagem para um recém descasado. Pouco pensava nisso, já que, embora estivesse cem por cento seguro da decisão que tomara, estava emocionalmente destruído, de modo que, melhor que ficar em casa ouvindo as baladaças de hard rock que povoaram sua imaturidade era sair para reencontrar as priscas eras. Não eram as mesmas, claro, mas um pouco de boa vontade e paciência o enchiam de coragem para encarar a primeira noite de solteiro de novo. E para sempre, pensava.

Fazia pouco tempo que tinha recorrido ao dicionário para compreender a diferença entre os verbos cantar e cantarolar. Só fez isso depois de ter ficado intrigado com uma frase de uma crítica impressa numa de suas revistas preferidas, pela qual nutria ao mesmo tempo amor e ódio, dependendo de quem escrevia o texto que se sentia imbuído a ler. Nunca fora bom em português – lembrava – de modo que isso não faria, para um amante do rock, a menor diferença. Também nunca dera atenção, de uma forma geral, às letras das músicas que mais gostava, o importante era o rock. Mesmo porque pouco entendia do inglês malemolente que saía do gogó de seus ídolos.

Lembrava disso quando, súbito, as caixas de som jogavam em seus ouvidos, de supetão, a introdução de “YYZ”, uma porrada daquelas com instrumental denso e carregado que só poderia sair das cabeças e do esforço físico dos três loucos do Rush. Mas sabia que o próprio trio canadense considerava “La Villa Strangiato” a música deles mais difícil de ser tocada. Achava graça de si próprio ao lembrar que sempre cantou as duas músicas, ambas instrumentais. Ou o correto seria cantarolar? Depois de quatro ou cinco chopes, isso pouco importava. O importante era estar naquela espelunca enfumaçada e com cheiro de bebida encravado em cada canto, por causa das sucessivas lavagens mal feitas ao término de cada noite.

Só o rapaz que estava por trás do balcão ainda era o mesmo. Foi ele quem o cutucou apontando para uma pequena que, segundo disse, estava há tempos lhe buscando um flerte. Não pensou duas vezes e, ainda cantarolando a música, percebeu no ombro desnudo da moça quatro números tatuados. Dois, um, um e dois. Foi o bastante para a conversa fluir noite adentro até que a espuma branca começasse a rondar os pés deles, num sinal de que era preciso cantar em outra freguesia. Era a última coisa que lembrava ao acordar, numa cama que não reconhecia, incomodado pelo sol da tarde de domingo. Olhou para o lado e, tal qual uma miragem, lá estava o número fatídico: 2112.

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