O Rock Como Ele é

Implicância

Tendo fortes emoções, já passava a colecionar outras grandes fases, de modo que elaborava, tal qual o protagonista de “Alta Fidelidade”, um top five.

Foi através de um scrap no orkut que ela reapareceu. De início, não reconheceu a foto da antiga amiga do segundo grau, afinal já se somavam mais de vinte anos de distância entre as duas épocas. Mas também não demorou muito para que logo visse no três por quatro virtual o semblante daquela menina, e hoje, mulher feita. Por curiosidade foi até o álbum de fotos e constatou que as duas moças que ali estavam eram praticamente idênticas à mãe, além, é claro, de se parecerem entre si. Não fosse pela diferença de altura, diria que as duas loirinhas eram gêmeas.

Viviam, hoje, a época da modernidade total. Aquelas ferramentas utilizadas por eles nas aulas de desenho – régua T, aranha, escalímetro – hoje pareciam mais peças de museu, se o Brasil tivesse um povo dado à memória. Na dele, contudo, permaneciam imagens que jamais poderiam lhe ser subtraídas. Durante certo tempo considerava aquela época a melhor de sua vida. Não somente por causa dela, claro, mas por todo o florescer de uma juventude para a qual, até então, vivendo numa outra cidade e pertencendo a uma classe social apartada, ainda não conhecia. Mas, depois, tendo fortes emoções, já passava a colecionar outras grandes fases, de modo que elaborava, tal qual o protagonista de “Alta Fidelidade”, um top five.

Fez um esforço de memória e conclui que, naquele tempo, havia um verdadeiro abismo entre ambos. Mais que isso, uma certa implicância mútua típica de quem, no fundo, no fundo, está interessado um pelo outro, na linha do “quem desdenha quer comprar”. Só reconhecia isso agora. Na época eram como gladiadores da alma que se escondiam atrás dos escudos da origem social. A dele, mais modesta, submissa até; a dela, rica, pomposa, quase arrogante. Eram esses os estereótipos que os mantinham afastados, além, é claro, de pessoas eventualmente mais interessantes e ao alcance de ambos. Foi com essa parcimônia tácita que concluíram, juntos, os estudos de nível médio.

Já fazia algum tempo que ele vinha vivendo aquilo de denominou de “a síndrome do reencontro”. Reencontrara, por acaso ou fatalidade, e às vezes até por interesse de outrem, vários conhecidos do passado. Lembrava da teoria do retorno de saturno, e percebia a cobra mordendo o próprio rabo a cada dia. Amigos, mulheres e antigos relacionamentos começaram a espocar de novo à sua frente. Tanto que desenvolvera uma lógica de que aquela amiga do segundo grau, ali, esbanjando simpatia naquele scrap, não poderia ser pura e simplesmente uma obra do acaso.

Pensava tudo isso enquanto lia o perfil da dona – não mais a moça que conhecera. Partiu para detalhes que não o animaram muito. Viu que a garota implicante se transformara numa mulher casada, mãe de família, quase uma matrona, e com uma vida que se assemelhava muito mais à de seus pais do que a sua. Grosso modo, percebeu que se interessaria muito mais pelas filhas delas – moças quase feitas, já que casara muito cedo, do que pela ex-menina com quem mantinha épicos entreveros naquele remoto passado. Se deu conta de que o mesmo orkut que o encheu de esperanças, fora aquele que, numa fração de segundos, o fez desistir de vez daquela correção histórica que imaginara.

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