Fazendo História

Elas só pensam em gritar

Nunca foi tão comum ver meninas gritando. Quer dizer, cantando de forma “nervosa”. Publicado na Revista Outracoisa número 18, de janeiro de 2007.

Quem está de olho no que acontece no mundo do rock – mais especificamente no heavy metal - ainda que de longe, sabe que o gênero nunca foi o dos mais habitados por mulheres. No passado, contavam-se nos dedos artistas como Lita Ford, Joan Jett ou Doro Pesch, que a duras penas fizeram um trabalho consistente e viraram motivo de adoração entre os cabeludos. Nos últimos tempos um sem-número de sopranos ganhou destaque na mídia, impingindo tons agudos e épicos ao estilo que flerta com o belzebu. Tarja Turunen (ex-Nightwish), Cristina Scabbia (Lacuna Coil) ou mesmo Amy Lee, do badalado Evanescence que o digam. O from hell heavy metal ganhou, então, contornos até angelicais. Só que isso é coisa do passado; o negócio agora é o vocal gritado, rasgado; gutural até. Sim, elas querem é gritar, e quando elas querem, ninguém segura.

Na real, isso acontece há tempos. O auge do thrash metal nos anos 90, que tinha como uma das principais características os gritos, revelou nomes como Sabina Classen, do grupo alemão Holy Moses e Rachel Heyzer, que fez fama à frente do Sinister. Mais tarde, na segunda metade da década, uma banda americana só de meninas ganhou espaço naquilo que se chamava de alterna metal, com Morgan Lander se esgoelando a frente do palco. O Kittie existe até hoje e tem grande reconhecimento no circuito underground americano. Dali em diante, novas bandas não pararam de aparecer, como o OTEP e o Arch Enemy, que trocou o vocalista Johan Liiva por Angela Gossow, em 2000. Caso a mudança não fosse anunciada, nem o mais aficionado dos fãs arriscaria dizer que a voz do disco “Wages Of Sin”, o quarto da banda, é de uma mulher. Angela cospe tijolos da primeira à última faixa.

A garota que nasceu numa noite chuvosa e sombria de novembro acredita ter uma personalidade ambivalente que adora o extremo. Sua paixão pelo peso vem de longe, quando aos 16 aninhos trocou os discos de vinil do Queen por outros: Carcass, Morbid Angel e Cannibal Corpse - todos representantes do que há de mais extremo no death metal. O subgênero do metal tem guitarras ultra distorcidas, um repertório temático sobre guerras e vocalistas que se esgoelam o tempo todo. Um lugar insólito para uma mulher com o corpo esguio como o de Angela, que naquela altura já cantava em bandas menores. Nove anos mais tarde, num golpe do destino, ela foi convidada para integrar o Arch Enemy, a banda de Michael Amott, que foi guitarrista do Carcass. O grupo sueco é uma das sensações do death metal melódico. “Comecei a escrever para uma revista on line, especializada em rock e metal, e os entrevistei. Entreguei para eles uma cópia de uma demo da Mistress, minha banda na época”, conta ela, no perfil que mantém no myspace.com. “Um ano depois o próprio Michael Amott me ligou, disse que estava procurando um novo vocalista e me chamou para fazer uns testes na Suécia. Depois que eu gravei a primeira música, a decisão estava tomada: Angela Gossow seria a nova vocalista do Arch Enemy”, comemora, numa típica história de conto de fadas.

Quem desavisadamente foi ao último show do Helloween no Rio, no início do ano, surpreendeu-se com a banda de abertura que tinha como vocalista uma menina de cabelos vermelhos e um vozeirão daqueles. O Shadowside, de Santos, nada tem de death metal, mas Dani Nolden, a tal garota, nunca foi de usar timbres agudos para cantar. “Eu reservo a voz mais gritada para certas partes da música. Não uso vozes líricas em momento algum, mas uso a voz limpa e com força, deixando as partes rasgadas para momentos mais agressivos ou que precisam de emoções como angústia, ansiedade. Gosto de usar a voz de todas as formas possíveis, cheguei até mesmo a fazer algum vocal gutural em uma banda de dark metal”, conta a pequerrucha, que tem banda desde os 15 anos. Diferentemente de Angela, ela é da escola do metal tradicional e do hard rock e tem como referências os ícones desses subgêneros. “Aprendi a cantar escutando meus vocalistas favoritos, como Sebastian Bach (Skid Row), Rob Halford (Judas Priest), Paul Stanley (Kiss) e Freddie Mercury (Queen, aquele mesmo que Angela trocou pelas podreiras do death metal)”, conta, enumerando professores de respeito.

Corta para o Rio Grande do Sul. A banda gaúcha Redoma existe desde 2004, e não faz exatamente um metal extremo como o Arch Enemy. Tampouco flerta com o hard do Shadowside. O som do grupo está mais para o metal alternativo que se proliferou nos Estados Unidos depois do sucesso de bandas como o Korn e Deftones, o que significa que os vocais se alternam entre “sujos” e “limpos”, todos incrementados por Cássia Segal, cuja semelhança com Dani só passa pelos cabelos avermelhados. “Gosto do contraste do vocal suave com o agressivo. A música da Redoma pede o vocal mais energético em certas horas. Tanto eu como o Lucas, o guitarrista, arriscamos uns berros, só pra manter o clima nervoso na música”, conta ela, que gosta mesmo é de ver os fãs “se quebrando” no meio do show. O leque de referências dela vai de Hole, a viúva de Cobain, aos gritos da Kittie, passando até pelo gothic metal do Lacuna Coil.

A Redoma ainda trilha os caminhos do underground, mas Cássia sabe muito bem em que terreno está pisando. “Houve uma onda muito forte de bandas surgindo com mulheres de interpretação mais agressiva e o Brasil não tá atrás. Pena que aqui essas bandas ainda sejam muito underground e não consigam se promover tanto. Mas essa tendência tem um público fiel e está crescendo muito”, acredita. Para Dani, a coisa de mulher berrando, quer dizer, cantando no meio metálico vem de longe, mas a agressividade e a forma gritada de cantar ainda não se estabeleceram pra valer. “No heavy metal as mulheres são minoria, e a maioria delas canta de forma doce, suave ou erudita. Para o vocal mais grave se tornar uma tendência, as bandas novas precisam começar a seguir essa linha”, teoriza, ao mesmo tempo em que não se esquiva de uma generosa auto-avaliação: “Eu ainda não conheci uma cantora que segue o mesmo estilo que eu, variando entre grave e agudo, voz limpa e rasgada”.

Se você, garota adolescente, está lendo essa matéria, não tente fazer isso em casa. Sair por aí gritando em banda underground pode até dar certo, mas quando a coisa chega a um estágio profissional, com uma pesada agenda de shows a cumprir, o bicho pode pegar. Angela Gossow que o diga. A garota, que é vegetariana, chegou a ficar seis meses parada por problemas nas cordas vocais. “Depois de muitos ensaios eu perdi a minha voz completamente antes da primeira turnê no Japão. Todos esses anos gritando sem nenhuma técnica causaram danos às minhas cordas vocais. Tive que parar para reaprender a fazer tudo: falar, respirar, e, claro, gritar”, conta, aliviada. E segue: “Mas agora está tudo bem, conheço melhor a minha voz, suas possibilidades e limitações. Acabou sendo bom isso acontecer”. Hoje, ela até indica fontes de aprendizado para as iniciantes. “Uma boa introdução na técnica de gritar, aquecimentos, etc, é o DVD ‘The Zen Of Screaming’, da professora de canto americana Melissa Cross (www.melissacross.com)”. É o conhecimento ajudando as meninas a correrem o mundo despejando o charme e urros. O metal extremo orgulhosamente agradece.

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