O Homem Baile

Eclético e virtuoso, Living Colour dá aula de bom gosto dentro da música pesada

Na terceira passagem pelo Rio, ontem, no Circo Voador, grupo americano abusou da boa técnica e encerrou turnê mundial em grande estilo.

O sujeito que adentrasse o Circo Voador na noite de ontem por volta de uma e pouco da manhã poderia pensar que estaria chegando no final do show do Living Colour, e não só pelo avançar da hora. É que a banda abriu os trabalhos com nada menos que o hit “Type” (citando “Police And Thieves”, famosa com o Clash), com o público vibrando em ritmo de encerramento. Era como se o Black Sabbath começasse com “Paranoid”, ou o Deep Purple, com “Smoke On The Water”. Quase duas horas depois, este mesmo público não arredava o pé do Circo, aos brados de “Living Colour, Living Colour…”. Não em vão.

O que aconteceu nessas duas horas tem lugar garantido na memória daquele público de sorte. É verdade que o grupo americano nada lança desde 2004, quando começou a se reunir de novo, mas isso não lhe rouba, no palco, nada que faça do show uma experiência de agradável criatividade musical. Mesclando os poucos hits que eles consagraram, com evoluções instrumentais de primeira linha, o quarteto faz uma verdadeira exibição de virtuose sem que isso soe chato aos ouvidos menos preparados – muito embora alguns exageros quase tenham jogado tudo por água abaixo, como os enfadonhos dez minutos reservados para o solo de bateria de um Will Calhoun pouco inspirado. Ele se sairia melhor tocando entre as músicas, no estilo que o consagrou de solar o tempo todo, como se a condução fosse o próprio solo.

Doug Wimbish, por sua vez, fez estripulias no baixo pra ninguém botar defeito. Além de peso e groove diferenciados, deu à banda uma consistência sonora incrível. No solo que lhe coube maior evidência (ele também faz isso o tempo todo) chegou a tocar com os dentes, ao passo que propunha um diálogo como Vernon Reid. Este estava em noite inspiradíssima, numa performance bem superior à vista em 2004. Reid é praticamente, na guitarra, o degrau imediatamente anterior ao de Jimi Hendrix. Isso se não for a encarnação do próprio. Possesso, o guitarrista enviesou solos espetaculares em quase todas as músicas, além de dar sustentabilidade e coesão, enquanto guitarra base, em todo o show. O ultrapesado riff de “Go Away”, a única nova do repertório, que o diga. A música é uma das coisas mais pesadas já feitas nos últimos tempos.

Num show do Living Colour tudo pode acontecer. Para a banda, a distância que separa o heavy rock do jazz é quase impercebível, tamanha a facilidade que o grupo tem em transitar por todas as vielas da música de bom gosto. Corey Glover, com um porte redondinho, mostrou um alcance vocal em falsetes inusitados, mas se saiu bem mesmo soltando a voz com o rigor que a música pesada exige. Caso por exemplo, da oportuna (de novo) “Elvis Is Dead”, que ganhou uma versão pra lá de estendida. O público parecia ensaiadinho e vibrou muito, já na abertura e em outros hits como “The Glamour Boys”, regido por Corey, e o final sensacional com “Time’s Up”, que ganhou a primeira roda de pogo da noite, e a esplêndida “Cult of Personality”.

Aí é que aqueles gritos de “Living Colour, Living Colour…” citados no início do texto se impuseram. Parecia que não haveria bis, mas uma pequena assembléia entre os músicos, ainda no palco, deliberou por “Should I Stay Or Should I Go”, do Clash, detonando a segunda e maior roda de pogo. Vernon Reid aproveitou para destruir completamente as cordas de uma das suas (poucas, é verdade) guitarras. Depois de muita despedida, baquetas ao ar e goles de caipirinha, a banda ainda voltou para uma espetacular versão para “Crosstown Traffic”, de Jimi Hendrix, talvez a cover (dentre tantas citadas pela crônica) que melhor simboliza o estilo único encarnado pelo Living Colour. Pode colocar o carimbo de histórico aí nesse show.

Tags desse texto:

Comentários enviados

Sem comentários nesse texto.

trackbacks

There is 1 blog linking to this post
  1. Rock em Geral | Marcos Bragatto » Blog Archive » Ousadia em cores vivas

Deixe o seu comentário

Seu email não será divulgado