Rock é Rock Mesmo

Como um grande jornal cria estereótipos e prejudica o underground e o rock

No underground é assim: anos de trabalho e dedicação podem ir por água abaixo a partir de uma simples reportagem em um grande jornal. Nosso colunista sai em defesa do Garage, o grande celeiro do rock carioca. Publicado originalmente no Dynamite on line.

Meus amigos, vejam como são difíceis as coisas para quem labuta no underground. Anos de trabalho e dedicação perigam ir por água abaixo a partir de uma simples matéria de um grande jornal. Me refiro a uma reportagem publicada no jornal O Globo no último domingo, que, a título de mostrar como menores de idade têm acesso fácil a álcool e drogas, acabou dando uma visão estereotipada de um dos points rock mais tradicionais e férteis no quesito bandas novas do Rio de Janeiro: o Garage.

Não me considero um jornalista do tipo “ombudsman” - meu amigo Dr. Rodivaldo é que gosta de cumprir este papel (aliás, como ele anda sumido), mas, depois de todos estes anos, simplesmente não posso ficar calado depois de ter lido o texto em questão, por sugestão do amigo Tiago Velasco, também colaborador da Revista Dynamite e de outras publicações. Assim como eu, ele indignou-se com o que leu.

Na dita reportagem, que provavelmente ainda pode ser lida no Globo On Line, a jornalista afirma que na Rua Ceará, endereço sagrado do Garage, menores consomem álcool e drogas e se prostituem atrás dos carros. Que jovens vestidos de preto se concentram na “boite” Garage, num bar “punk” e no “bar do rock”. E que, apesar dos cartazes avisando que menores só entram acompanhados dos pais, não é pedida a carteira de identidade para se entrar no Garage. Para dar o tom jornalístico à coisa, há dois depoimentos, curiosamente de um curitibano e de um adolescente, “filho de uma professora”. O primeiro confirmou, segundo a matéria, a venda de drogas na Rua Ceará, e o segundo sugeriu (pelo que deu para entender no confuso texto) que entra no Garage mostrando “a carteira de um maior”.

A dita reportagem vai bem mais além, e para entrar nos méritos ali abordados, teria eu próprio que fazer uma reportagem, apurando algumas afirmações ali contidas, para que a emenda não saísse pior que o soneto. Mas, de outro lado, não posso me calar diante de tamanha estereotipação, e decidi, ao menos, fazer a defesa do Garage e de quem freqüenta a região nos sábados à noite, sendo eu próprio um desses freqüentadores.

Em primeiro lugar, que fique claro (muita gente de fora do Rio talvez não saiba) que o Garage não é, nem nunca foi uma boite. Boate é o local onde, em geral, salvo exceções, pessoas entram para dançar, se divertir, azarar, e o que toca é música mecânica. O Garage é uma casa de shows, um espaço underground responsável por revelar novas bandas do rock carioca e nacional, já há uns 14 anos. Nos anos 90, foi lá que o heavy metal carioca fez sua morada, quando a casa virou a Meca do gênero.

Mais tarde também se transformou no berço de vários outros artistas e gêneros musicais, que, vedados no mercado musical estabelecido, encontravam ali o espaço para crescer. Marcelo D2, por exemplo (que ontem merecidamente levou o Prêmio Multishow de melhor disco), nos dias mais difíceis, chegou a dormir lá por várias noites, debaixo do palco. Foi no Garage, também, que o Los Hermanos tocou, pela primeira vez para o público, “Anna Júlia”, a música que levaria a banda ao sucesso e que até a reportagem d’O Globo hoje conhece. Muito mais que uma “boite”, o Garage é o grande celeiro do rock carioca, quiçá nacional. Afamado, o local já recebeu shows de bandas internacionais como Buzzcocks, Madball e Agnostic Front.

Depois, é preciso separar as coisas. Quando o Garage começou, lá nos idos dos anos 90, a pacata Rua Ceará só abrigava prédios decadentes, com residências de moradores de baixa renda, além de, curiosamente, um Centro Espírita, o próprio Rotary Club (onde o Garage funciona) e uma oficina do clube de motoqueiros Balaios. E foi assim durante anos. Nos últimos tempos, entretanto, com a abertura do (ótimo) Bar Heavy Duty, junto à oficina dos Balaios, e da infeliz transferência da Vila Mimosa, a mais tradicional zona de prostituição da cidade, que a prefeitura “relocou” para a Rua Sotero dos Reis, que faz esquina com a Rua Ceará, para liberar a construção de modernos prédios no lugar de origem, tudo mudou. Jovens de todas as idades passaram a freqüentar a rua, atraídos pelos módicos preços dos bares, biroscas e barracas da região, e, boa parte, pelo som, rock de certa qualidade, tocado gratuitamente em generoso volume até o amanhecer. Criou-se, assim, como muitos chamam, o “Baixo Ceará” ou “Baixo Metal”, numa referência aos longos cabelos e às tais roupas pretas usadas por boa parte dos freqüentadores.

Digo isso tudo para concluir que, hoje, pouco tem a ver o público que freqüenta a Rua Ceará com aquele que vai ao Garage assistir aos shows das bandas novas. Sobretudo, por dois motivos. Primeiro que a lotação máxima do Garage gira em torno de 700 pessoas, e na Rua Ceará, nas madrugadas de sábado para domingo, circulam cerca de três mil. Segundo que, há mais ou menos um ano, o Garage estava fechado, e a Rua Ceará já fervilhava. Então, senhores repórteres d’O Globo, nada (ou pouco) tem a ver o Garage com o movimento da Rua Ceará.

Um terceiro fato que absolve o Garage de qualquer acusação quanto ao consumo de drogas ou à entrada de menores encerra o assunto. Eu mesmo, no último sábado, coincidência ou não, quando a nefasta matéria já estava impressa, estive no Garage. Era aniversário de minha sobrinha, e o presente solicitado era uma ida ao Garage (e à Rua Ceará) com seus amigos. Chegando lá, conversei com Wilma Fernandes, a atual responsável pela casa, sobre a possibilidade do grupo de adolescentes, todos menores, entrarem para assistir aos shows. Wilma foi taxativa. Me disse um sonoro não sem maiores rodeios e esclareceu-me sobre todos os problemas que têm enfrentado para cumprir o que a lei determina, já que boa parte do público rock (alvo da casa) é composta de adolescentes. A proprietária ainda afirmou que ela própria impede o consumo de drogas dentro do Garage, retirando pessoalmente quem “sai da linha”. Tudo isso numa conversa informal, onde Wilma poderia até ter admitido o contrário, se fosse o caso. Já do lado de fora, um dos amigos de minha sobrinha, também menor, disse que já desistiu de entrar no Garage, visto que foi barrado diversas vezes. No Garage, é fato, menor não entra e lá dentro não se consome drogas.

Aqui cabe um parêntese. O Estatuto da Criança e do Adolescente, considerado um dos mais avançados do mundo, deve estar sendo, no mínimo, mal interpretado por nossas autoridades. Confesso que nunca li o texto amiúde, e que impedir o acesso de adolescentes ao álcool e as drogas (embora eu não seja contra nenhum dos dois, mas a discussão é longa), é uma atitude das mais acertadas. Mas daí a vedar o acesso do adolescente ao rock, à música, à cultura, enfim, não está correto. Dependendo do tipo de artista, o público adolescente é fundamental, é para este que o som é feito. Há de se encontrar uma forma de manter os menores longe das drogas, sim, mas não necessariamente longe do rock’n'roll.

Voltando à matéria d’O Globo, talvez nossa querida equipe de reportagem tenha confundido o público rock que freqüenta a Rua Ceará com o da Vila Mimosa. Ora, ninguém se prostitui na Rua Ceará, muito menos atrás de carros. Só uma visão muito atrasada pode enxergar, num amasso atrás de um veículo estacionado, uma cena de prostituição. Se prostituir é fazer sexo por dinheiro, e os adolescentes que freqüentam a região podem até namorar com, digamos, maior veemência, mas jamais por grana. Na Vila Mimosa, sim, a prostituição é o negócio. Mas lá, duvido muito que uma profissional do sexo exerça sua profissão na rua. Como diz o ditado, a zona é um local de trabalho dos mais organizados.

Voltando a questão dos menores, se eles estão freqüentando a alta madrugada da Rua Ceará, a reportagem d’O Globo deveria argüir os seus responsáveis. Se eles recorrem a locais onde possam ter mais liberdade, é porque não encontram essa liberdade em casa ou em outras instituições de nossa sociedade. O problema é muito mais profundo e complexo, do que simplesmente se apontar para uma região e, tal qual um policial, buscar culpados e firmar estereótipos que nada contribuem para sua solução. A questão, antes de ser um caso de polícia, é, sobretudo, social.

Por fim, fica aqui um depoimento pessoal. Freqüento points rock no Rio de Janeiro há mais de 20 anos, já conheci lugares semelhantes em várias cidades, no Brasil e no exterior. Já vi de tudo, em se tratando de drogas, do Circo Voador ao bairro vermelho, em Amsterdã. Certamente sou um dos que mais vezes esteve no Garage e na Rua Ceará, freqüento a região desde que o então “Garage Art Cult” só exibia vídeos. E afirmo, sem medo de errar, que nunca vi, no Garage, nada disso que a reportagem d’O Globo publicou no último domingo.

Até a próxima, e long live rock’n'roll!!!

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