Rock é Rock Mesmo

Cine Íris: ou dá, ou desce!

Se quiser continuar fazendo shows no Cine Íris, a produção da Loud! deve batalhar para conseguir melhores condições para todos. Show de punk rock sem PA, com cadeiras e seguranças de terno não dá. Publicado originalmente no Dynamite on line.

Estamos em 2003 e parece que até hoje a cidade do Rio de Janeiro não se recuperou das perdas do Circo Voador, o “Marquee brasileiro dos anos 80″, em 1996, depois de uma atitude arbitrária do então (e atual) prefeito César Maia, e do Garage, o “CBGB’s brasileiro dos anos 90″, há cerca de um ano. Tanto que duas das poucas opções para shows de rock na cidade são o “Ballruim” e as festas que contam com bandas tocando ao vivo como uma das atrações. A principal delas, a Loud!, que neste ano completa quatro primaveras, vive um grande dilema, até mesmo um paradoxo: ao mesmo tempo em que apresenta as melhores atrações em se tratando de bandas novas, inclusive de outros estados e até internacionais, não consegue oferecer boas condições, nem para as bandas nem para o público.

É que a festa acontece no Cine Íris, tradicional sala de cinema inaugurada em 1909, e que, antes de receber festas (não só a Loud!, mas várias outras) nos finais de semana, funcionava somente com exibição de filmes pornôs e shows eróticos a preços populares. Agora os filmes continuam durante o dia, mas certamente vem da juventude que lota as festas a verba que sustenta a cara manutenção predial, considerando que o prédio é tombado pelo Patrimônio Histórico.

Durante os shows o público é obrigado a ficar entre as fileiras de cadeiras, fixadas no chão. Isso já aconteceu em vários locais, e no Rio, dois bons exemplos são o Teatro Ipanema e o Teatro Carlos Gomes, onde o público do Titãs quebrou tudo no histórico show da turnê “Cabeça Dinossauro”, em 1987. Outro problema é que, como na maioria dos casos em que a música mecânica coloca os shows em segundo plano, sempre acontecem reclamações de parte do público e da banda, já, que, nos intervalos entre uma música e outra, o som das pistas costuma “vazar”, atrapalhando o andamento dos shows. Em uma dessas oportunidades, quando o grupo alemão de rock industrial Einstuerzende Neubauten esteve no Rio, o vocalista Blixa Bargeld chegou a ameaçar parar o show, coisa que, graças ao bom senso, não aconteceu. Mas que pegou mal, isso pegou.

Nos últimos tempos, a dificuldade de equalizar o som (o prédio tem cerca de 30 metros de altura e vários pisos em níveis intermediários) parece ter sido resolvida, até porquê, se percebe, o equipamento que está sendo utilizado é outro. Mas o que aconteceu no último sábado, durante o show do Replicantes, foi algo de realmente lamentável, e, do ponto de vista do público, como consumidor, até ultrajante. Quem me conhece ou mesmo já leu resenhas que escrevo, de shows e de coberturas de festivais, sabe que não sou o tipo de jornalista que analisa uma banda pelo lado técnico da coisa, e raramente comentários do tipo “a guitarra estava baixa”, “problemas técnicos atrapalharam” ou “não dava para ouvir o vocal” são encontrados em meus textos. Para mim o que importa é rock, a atitude, o enlace que a banda consegue proporcionar com o público.

Acontece que, durante o show do Replicantes, que, se não me falha a memória, tocou no Rio pela terceira vez, em mais de 20 anos, e que conta com o retorno de Wander Wildner, o vocalista da formação original, uma generosa turba de fãs se aglomerou em frente ao palco. Várias gerações começaram a se deliciar com clássicos do grupo, tocados com uma garra sensacional, parecia que os anos 80 estavam enfim de volta, sem semelhança com a armação de medalhões que, nas palavras de Lobão, mais parecem “defuntos”. É claro que as cadeiras não agüentaram, os enternados seguranças não deram conta do recado e antes da metade do set list uma ordem partiu do representante dos proprietários do cinema para desligar o som do PA e colocar para fora os adeptos do mosh. Muitos foram os “exilados”, e pelo menos dois deles conseguiram retornar ao shows, depois da intervenção de Zé Felipe (da dupla de DJs Zé & Gordinho), um dos organizadores da Loud! Zé também mandou religar o PA, mas o fato é que na maior parte do show só se ouvia a voz de Wander Wildner, a menos para que estava muito perto do palco e pode ouvir tudo direto dos amplificadores. Ainda segundo Zé, a Loud! terá de pagar por dez cadeiras que não resistiram à fúria dos Replicantes. Eu mesmo fui cobrar o operador da mesa de som, que me disse ter recebido a ordem para “abaixar” o som, no intuito de “acalmar” o pessoal.

Ora bolas, todos que estavam ali pagaram para ver o show de uma banda das mais representativas na história do rock nacional, e foram vilipendiados nos seus direitos de consumidor, frustrando expectativas e realizações, ainda que momentâneas. Mesmo se todos os ingressos fossem devolvidos (que é o deveria ter ocorrido), ainda assim a perda seria irreparável.

A lição a ser tirada dessa história é que os proprietários do Cine Íris (descendentes de João Cruz Júnior, fundador da sala que tem até hoje o retrato afixado no elevador) se beneficiam do lucro obtido pela Loud!, mas não querem oferecer o mínimo para o público, ou seja, participar de acordo com o tipo de som que se está sendo tocado. Segundo Zé, os proprietários, que são muitos e vivem da receita do cinema, não costumam atender as solicitações da Loud! para melhor as condições do cinema em vários aspectos, como a colocação de poltronas removíveis, que pudessem ser retiradas durante os shows e recolocadas para a exibição dos filmes, ou mesmo a liberação do cinema num horário mais cedo (por isso os shows começam tão tarde).

Mas na hora de abocanhar a parte dos lucros que lhes cabe, os proprietários agradecem. Não é à toa que depois que as festas começaram a ser organizadas, há cerca de cinco anos, toda a fachada original foi restaurada, os banheiros, que eram deploráveis, ganharam revestimentos em mármore, louças e metais de primeira linha, as poltronas passaram a ser estofadas e confortáveis, e já está em andamento, a olhos vistos, a montagem de um sistema de ar condicionado. Ou seja, é com o dinheiro do público que ficou sem som no último sábado, e que foi colocado para fora, que o Cine Íris está se modernizando e ostentando a manutenção do fiel estilo das escadas e espelhos franceses e dos azulejos importados de Portugal no início do século passado. É verdade que a exibição contínua de filmes pornôs com shows eróticos ao vivo, de segunda a segunda, também proporciona uma boa receita, graças ao baixo custo e à alta rotatividade do público, mas por quê então esses investimentos não foram feitos antes?

Sabemos todos das dificuldades de conseguir um bom lugar para shows no Rio, e reconhecemos a louvável iniciativa da Loud!, mas os seus produtores têm que pressionar e o Cine Íris precisa se posicionar. Se quiser continuar faturando esse (me parece farto) extra com as festas e com os shows de rock, tem que proporcionar mínimas as condições necessárias. Ou dá, ou desce.

Sobre o show, que deveria ser o prato principal desse cardápio, vale ressaltar que foi o carisma, a disposição e a altivez de Wander Wildner que salvaram a noite. Ele praticamente levou todo o set sozinho no gogó (só se ouvia a voz dele), ajudado pela ótima participação do público. Não fossem os proprietários do Cine Íris, este teria sido certamente o melhor show-de-uma-banda-nacional-com-a-volta-do-principal-vocalista em todos os tempos. Antes, alheio a tudo isso, o Autoramas fez um showzaço, com o som no talo, e apresentando algumas músicas do novo álbum, “Nada Pode Parar Os Autoramas”, no forno da Monstro.

Até a próxima, e long live rock’n'roll!!!

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