Rock é Rock Mesmo

O Inusitado encontro da surf music com o heavy metal

Conheça dois álbuns de uma única banda dedicados ao rock pesado instrumental, que firma a identificação entre heavy metal e surf music, dois gêneros que inusitadamente costumam se encontrar. Publicado originalmente no Dynamite on line.

Pode parecer estranho, mas é verdade, heavy metal e surf music são, sim, gêneros afins. Apesar de pouco observado pela imprensa musical, de uma forma geral, e rejeitado pela crônica heavy metal em particular, os dois gêneros estão intimamente ligados, e, em determinados períodos da história, tiveram peculiaridades e afinidades das mais interessantes, chegando mesmo a estarem fundidos.

Antes, porém, é bom deixar claro que aqui me refiro apenas à surf music de raiz, aquela criada nos anos 60 por Dick Dale na costa oeste americana, quase 100% instrumental. Isso porquê, durante os anos 90, muita confusão se fez entre surf music e rock australiano, e esse fato merece um parêntese. Nesse período, surfistas brasileiros passaram a competir no exterior, em paraísos naturais como Havaí, Bali e Austrália. Durante essas viagens eles tiveram contato com o rock australiano com origem nos anos 80, e traziam para o Brasil gravações de artistas como Hoodoo Gurus, Spy Vs Spy e Midnight Oil, entre outros. Divulgados por veículos especializados (notadamente a Rádio Fluminense) como sendo bandas de surf music - e não músicas que surfistas ouviam, essas bandas acabaram fazendo grande sucesso e marcando o rótulo na época, causando grande confusão a partir de então. Mas não se engane, surf music é aquela música majoritariamente instrumental, criada a partir das experiências reverberantes de Dick Dale e Leo Fender nos anos 50.

Dito isso, e o que tem o heavy metal com o peixe? Criado no início dos anos 70, basicamente pela tríade Black Sabbath (com o componente do mal), Led Zeppelin (com raízes no blues pesado) e Deep Purple (com referências sinfônicas), o gênero ganhou o nome de uma expressão utilizada na música “Born To Be Wild”, do Steppenwolf, incluída na trilha sonora do filme “Easy Rider”, em 1969. “Heavy metal thunder” era a expressão usada para definir o ronco das motocicletas envenenadas pilotadas por Peter Fonda e Dennis Hopper. O termo, entretanto, apareceu cunhado pela primeira vez numa obra literária no livro “Naked Lunch”, de William Burroughs, em 1962. É claro que antes já existiam bandas fazendo um som mais distorcido, mas nada que catalisasse o conceito em si. E, acreditem, sem Dick Dale, considerado o “pai da surf music”, o heavy metal jamais existiria.

Isso porquê não existe heavy metal sem guitarras distorcidas e foi Dick Dale que forçou um precoce desenvolvimento tecnológico nos anos 60, que permitiu a expansão da música pesada quase vinte anos depois. Dick Dale trabalhava junto com Leo Fender, cujo nome acabou virando marca de guitarra. Cada equipamento que Fender produzia, cada vez mais potente, era posto pelos ares impiedosamente por Dale, e dessa parceria se desenvolveram equipamentos (não só amplificadores, mas captadores, reverberes, etc.) sem os quis o heavy metal jamais teria existido. Daí Dick Dale ser também identificado como “o pai do heavy metal”.

Esses dados históricos poderiam até ser insuficientes, se notarmos, que, genericamente, nada tem a ver aquele som reverberado e instrumental da surf music com os solos de guitarra, os vocais agudos, as letras épicas e outras características do heavy metal. Mas é aí que entram as bandas que vão comprovar a interessante existência desse elo perdido. Primeiro que, nos anos 90 um enorme revival, criado a partir do resgate feito pelo filme “Pulp Fiction - Tempo de Violência”, trouxe milhares de bandas de surf music, que com equipamentos mais avançados, misturaram de tudo à tradicional vertente: punk rock, hardcore, música mexicana, etc. Nessa turma, é bom destacar um interessante sinal. A banda americana Surf Report, no álbum “Inferno”, de 1996, lançado pela gravadora independente Rickshaw Records, fez uma versão “surf” para um dos maiores clássicos do heavy metal em todos os tempos, “The Trooper”, do Iron Maiden. A música é a última do CD, aparece como se fosse um bônus, mas traz a deixa para a fusão de dois gêneros baseados majoritariamente na virtuose instrumental.

Outra citação válida é a dos guitarristas que fazem música pesada instrumental, como Vinnie Moore, Tony Macalpine, Steve Vai, e, em especial, Joe Satriani. Professor de guitarra de nomes famosos como Kirk Hammett (Metallica) e o próprio Steve Vai, Satriani resolveu colher a parte que lhe cabia do sucesso no universo da música pop e partiu para um trabalho extraordinário. Seu disco mais famoso e mais vendido até hoje é “Surfing With The Alien”, de 1987, lançado no Brasil pela Sony, mais uma alusão ao personagem dos quadrinhos Surfista Prateado do que propriamente à surf music. Adorado pelos fãs de metal, Satriani tem até hoje suas músicas usadas como trilha sonora da grande maioria dos programas e esportes de ação em TVs em todo o mundo, o que já deve tê-lo deixado rico, só com o recolhimento dos direitos autorais. Chamar a música de Satriani de surf music não seria cabível, mas que ela reforça o elo entre os gêneros, não há como negar.

Mas a mais perfeita tradução surf/metal, está numa banda dos anos 90, associada corretamente ao stoner rock (que vai freqüentar esta coluna em breve) chamada Karma To Burn. Nascida em 1993 no estado americano de West Virginia, a banda tocava música pesada e instrumental nos bares da região. Contratados pela gravadora Roadrunner, foram pressionados a gravar o auto-intitulado primeiro álbum (lançado no Brasil), em 1997, com um vocalista. O fracasso artístico e comercial da empreitada fez com que Will (guitarra), Rob (bateria) e Rick (baixo) dispensassem o vocalista de ocasião e mergulhassem fundo na proposta original do grupo. Mais que isso, e fugindo ainda mais de qualquer padronização, deixaram de dar nome às suas músicas, usando como títulos números em ordem aleatória. O resultado está em dois álbuns de rock pesado instrumental, absolutamente inusitados e sensacionais, e que firma, assim, enfaticamente, a identificação entre heavy metal e surf music.

Os discos são “Wild Wonderful Purgatory”, de 1999, e “Almost Heaten”, de 2001, este lançado no Brasil pela Sum Records. É bom destacar logo de início que não se trata de uma banda que perdeu o vocalista, e que, por não ter encontrado outro, simplesmente retirou as letras e passou a tocar as músicas em versões instrumentais. O Karma To Burn compõe músicas instrumentais já em sua gênese, o que se percebe não só pela falta de títulos(!), mas pela estrutura da música, que não obedece as seqüências de uma música pop (ou mesmo no rock ou heavy metal), isto é, introdução, primeira parte, ponte, refrão, segunda parte, ponte, refrão, solo, etc, etc. No Karma To Burn, assim como na surf music, ou ainda na música também pesada e instrumental de Satriani, quem faz as vezes dos vocais são os próprios instrumentos, o que leva qualquer um a “cantar” ou “cantarolar” como se os instrumentos falassem. E, acreditem, eles falam mesmo, num território onde o riff de guitarra é a grande vedete.

Mesmo com certa indiferença da mídia americana (afinal como um crítico que trabalha em série poderia descrever a música de uma banda cujo título é um número?) o grupo faz constantes turnês no Estados Unidos, sempre com outras bandas da cena stoner, embora já tenha até feitos shows de abertura para o Metallica. Certamente é uma banda sem precedentes e que vai demorar muito para ser compreendida e gerar grupos que sigam esse caminho. Mas, sem dúvida, o Karma To Burn resgata a surf music de raiz e representa a mais perfeita síntese desta com o heavy metal. Corra atrás, ouça e comprove.

Até a próxima, e long live rock’n'roll!!!

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