O Homem Baile

Vitalidade

Com grande performance vocal, Annie Haslam lidera o Renaissance em belo espetáculo; comensais brigam e interrompem o show no Vivo Rio. Fotos: Luciano Oliveira.

Annie Haslam reproduz fielmente os alcances vocais registrados há mais de quatro décadas

Annie Haslam reproduz fielmente os alcances vocais registrados há mais de quatro décadas

É a última música antes de um esperadíssimo bis, quando a cantora, que vinha fazendo impecável apresentação, se assusta e interrompe o show. Em meio a mesas muito próximas umas das outras, brigões se estapeiam no meio do salão enquanto a segurança não chega e o combate se repete mais adiante, ao som de garrafadas e taças quebrando. Antes, na parte inicial da noite, um gato quica e desaparece em pleno palco, talvez em um prenúncio de que coisas estranhas aconteceriam em um Vivo Rio lotado, na configuração de churrascaria. Limpada a área, o Renaissance pode arrematar sua – enfim – primeira apresentação na cidade, numa noite que era para ser marcante, sim, mas não exatamente por esses motivos.

Porque é, de fato, um show fadado a ser inesquecível, mais do que todos os outros. Muito provavelmente é a primeira e única oportunidade de ver o Renaissance, ainda que com uma formação remendada, mas a possível, para a grande maioria que se aboleta na casa. Contudo, o show é todo montado para a vocalista Annie Haslam, a única remanescente da formação clássica do grupo, brilhar, como se estivesse como artista solo, deixando os músicos acanhados na maior parte do tempo. Faz todo o sentido e é realmente o que acontece, porque Haslam, prestes a completar 70 primaveras, mantém incrivelmente o gogó intacto, reproduzindo fielmente os alcances vocais registrados há mais de quatro décadas, do início ao final de um show que supera duas horas, e ainda colocando a reputação em risco ao sustentar o sedutor tom de voz nas músicas mais recentes, compostas e gravadas já por essa formação. Ou seja, não amarela diante de novos desafios.

Annie Haslam canta ao lado do tecladista Rave Tesar, que faz um solo mais orgânico no final

Annie Haslam canta ao lado do tecladista Rave Tesar, que faz um solo mais orgânico no final

Sim, há um disco novo, lançado com o nome de “Grandine Il Vento”, em 2013, e reeditado como “Symphony of Light” no ano seguinte. Dele, são pinçados três números, bastante identificados com o rock progressivo de raiz, com destaque para “Symphony of Light”, repleta das mudanças de andamento que os fãs adoram, ao superar os 10 minutos de pura inventividade e técnica musical aliada – graças aos céus – ao bom gosto que faz a música parecer curta de tão agradável. Por isso mesmo o público, mesmo sem conhecer a canção, aprecia em silêncio até a explosão de aplauso ao final. “The Mystic and the Muse”, também com boas mudanças de andamento, é outra que funciona bem, com Annie Haslam experimentando um vocal mais arrojado, repleto de tonalidades de um tenor.

O que de certo modo subtrai um pouco o ritmo do show é o fato de Haslam ser uma conversadeira das boas, que conta histórias antes de todas as músicas, criando grandes intervalos entre uma e outra. Funciona nas músicas novas, quando, por exemplo, explica que agora é pintora, e que “The Mystic And The Muse” é inspirada em dois de seus trabalhos, “The Mystic” e “The Muse”, mas não nos clássicos. Músicas como “Carpet Of The Sun” e “Let It Grow” teriam maior impacto se fossem reconhecidos pela plateia por si só. A cantora também mostra boa memória ao comentar as vezes em que esteve no Brasil como artista solo, citando nomes das casas de show (Scala e Metropolitan, fotos aqui e aqui) com altivez, e ao lembrar até dos produtores de então, para os quais dedica “Let It Grow”.

O baixista Leo Traversa, que aproveita a música 'Ashes Are Burning' para citar um samba enredo

O baixista Leo Traversa, que aproveita a música 'Ashes Are Burning' para citar um samba enredo

São para eles - os clássicos - que o público está ali, e são cinco músicas dos álbuns de maior sucesso da banda, “Prologue” (1972) e “Ashes Are Burning” (1973), espalhados no set list (veja a ordem no final do texto). A cantoria se espalha pelo salão em “Carpet Of The Sun”, que vem depois da abertura, com “Prologue”, quando Annie Haslam já mostra a excepcional condição vocal no lindo cantarolar da música, sem letra. “Let It Grow” também empolga – repita-se - pela incrível capacidade da cantora de reproduzir a performance vocal original depois de tantos anos, sobretudo na parte final, mas é no bis, ameaçado de não acontecer por causa dos brigões, com “Ashes Are Burning”, que o show atinge ares de momento inesquecível.

A música, consagrada, é talvez o único momento em que os músicos têm espaço para mostrar suas individualidades, resultando em uma improvisação instrumental extraordinária de mais de 17 minutos de duração. São grandes solos do baixista Leo Traversa, que inclui um fraseado de “Pra Tudo Se Acabar Na Quarta-feira”, samba enredo da Unidos de Vila Isabel de 1984, de Martinho da Vila, e dos tecladistas Rave Tesar, mais orgânico, e Tom Brislin, com um verniz eletrônico/futurista. O público adora. Antes, uma surpresa, quando Annie Haslam anuncia “Quiet Night Quiet Stars”, a versão de “Corcovado”, de Tom Jobim, que ganhou letras em inglês de Andy Williams para se tornar um standard do jazz. Pouca gente reconhece, mas todo mundo sabe do que se trata. Fadado a ser inesquecível, apesar das intempéries, o show cumpre sua missão com sobras.

Annie Haslam, o tecladista Rave Tesar, no fundo, e o subaproveitado guitarrista Mark Lambert

Annie Haslam, o tecladista Rave Tesar, no fundo, e o subaproveitado guitarrista Mark Lambert

Set list completo:

1- Prologue
2- Carpet of the Sun
3- Ocean Gipsy
4- Grandine Il Vento
5- Symphony of Light
6- Let It Grow
7- Mother Russia
8- The Mystic and the Muse
9- A Song for All Seasons
10- Sounds of the Sea
Bis
11- Quiet Night Quiet Stars (Corcovado)
12- Ashes Are Burning

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Comentários enviados

Existem 6 comentários nesse texto.
  1. antonio em maio 27, 2017 às 12:40
    #1

    Belo texto Marcos. Texto de quem sabe o que está dizendo. Gostei bastante.

  2. Antonio Nahm em maio 27, 2017 às 18:02
    #2

    Espetacular é a narração de vocês. Incrível como está bem escrito esse texto, cheio de detalhes e feito por quem entende do assunto. Parabéns Bragatto!!!

  3. Marisa da Silveira Soares em maio 29, 2017 às 1:20
    #3

    A música tocada pelo baixista é “A Felicidade”, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, e não “Pra Tudo se Acabar na Quarta Feira”, de Martinho da Vila. Nem precisa incluir o meu comentário, que pode ficar apenas como contribuição ao texto, que está muito bom.

  4. Marcos Bragatto em maio 29, 2017 às 8:40
    #4

    Obrigado, Marisa. Era um solo e ele deve ter citado outras músicas também. Mas que rolou um fraseado (um pedacinho) de “Pra Tudo Se Acabar na Quarta-feira”, isso rolou.

  5. Marcos Bragatto em maio 29, 2017 às 8:40
    #5

    Obrigado, Nahm. Pena que não nos encontramos dessa vez.

  6. Roberto Fraga Jr em maio 31, 2017 às 16:19
    #6

    Excelente resenha.

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