O Rock Como Ele é

Encruzilhada

Se admirava até o Engenheiros do Hawaii, imagine os clássicos. Aprendera muito com Humberto Gessinger, sempre bombardeado pelo bairrismo da crítica paulistana, que tinha a vocação de só prestar atenção ao próprio umbigo.

Precisava desatar o nó que o havia prendido a uma pessoa que nunca o tinha merecido. Não era dado a rancores intempestivos, mas pensar assim, àquela altura, soava como um desabafo quase juvenil. Era, no entanto, o desafogo de sentimentos reprimidos que vinham pautando toda a sua vida. Não sabia se um flerte de adolescente teria o poder de modificar por completo a vida de alguém, mas achava que era desse mal que sofria. E não era de hoje que percebia os sintomas. Há anos andava só, embora fosse, por definição, um romanticão apaixonado das antigas. Ao menos foi o que lhe disseram, há muitos anos, a professora de literatura e uma astróloga com a qual se envolveu. Decidiu que só acreditaria se uma terceira voz confirmasse a tese, o que, de fato, nunca aconteceu.

Andar só tinha lá sua vantagens. Com o tempo, se converteu num beberrão incorrigível a vagar pelos points rock das cidades pelas quais viajava. O trabalho como multiplicador de um programa de qualidade de uma grande empresa lhe dava a oportunidade de ter, como dizia, um amor em cada porto. Tudo falácia de bêbado. Mas era o embriagado do bem, mais para o judeu de meia idade interpretado por Paul Giamatti em “A Minha Versão do Amor” do que para o chato de galochas em que, às vezes, quem bebe demais se transforma. As mulheres que o conheciam brevemente, nessas viagens, adoravam cortejá-lo. Ele é que não sabia como resolver o problema e pedia mais uma dose. É claro que ele sempre estava a fim.

Não sabia até quando andaria só. Bem sucedido desde cedo, graças a um curso técnico que o inseriu precocemente no mercado de trabalho, sempre se virou sozinho. Por causa de bons salários e de um controle de gastos incomum, tinha tudo ao seu dispor. Não era sovina, tampouco gastador: tinha o tino do gastar certo. Não era raro uma fulana descerebrada adentrar o seu apartamento em busca de sexo sem compromisso e se espantar com as estantes abarrotadas de discos, livros, fitas, todo o tipo de cultura. Cultura rock, claro. Se admirava até o Engenheiros do Hawaii, imagine os clássicos. Aprendera muito com Humberto Gessinger, sempre bombardeado pelo bairrismo da crítica paulistana, que tinha a vocação de só prestar atenção ao próprio umbigo. Talvez por isso andasse só.

Achava que viver assim era um absurdo como outro qualquer, mas já tinha desistido de procurar a moça – que hoje imaginava ser uma balzaquiana enxuta - nas redes sociais. Nessa horas, adotava a máxima de uma amiga psicóloga com a qual teve um caso, segundo a qual o problema estava nele, não nos outros. E aí se pegava a pensar mais do que devia, entre um copo e outro, um cigarro e outro, um disco e outro. Não tinha se adaptado ao mp3, só usava o formato no carro ou no computador. Lutava para se livrar do passado, mas era difícil. Erguia muros que, diferentemente da canção, não conseguiam lhe dar garantia alguma. Também não achava que tinha uma vida superficial, mas gostava de escutar a música mesmo assim, típico exemplo de fã que se identifica com a letra do rock preferido.

Com mais cinquenta primaveras razoavelmente vividas, pensava no que teria para deixar para o mundo, considerando o que recebera de sua família. Uma contabilidade inútil, mas é de coisas assim que se enche a cabeça de um velho rocker desajustado entre um copo e outro, entre uma baforada e um coçar na garganta comprometida pelo tabaco de má qualidade. E era aí que voltava ao início, como a cobra verde a morder o próprio rabo. Precisava encontrar a mocinha que, por ação ou omissão, encaminhou sua vida por esse estranho caminho percorrido. Andava só e precisava continuar, sem saber até quando. Mas, para sair dessa encruzilhada inevitável e espinhosa, tinha que desatar o nó que o havia prendido a uma pessoa que nunca o tinha merecido.

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Comentários enviados

Existem 4 comentários nesse texto.
  1. Daniel em fevereiro 17, 2012 às 11:03
    #1

    Nossa! Que texto ótimo! Várias referências das canções dos Engenheiros do Hawaii!! Valeu!

  2. @robertsdesouza em abril 13, 2012 às 19:49
    #2

    Baita texto, excelente! Várias músicas citadas nele…gostei. :)

  3. @robertsdesouza em abril 13, 2012 às 19:51
    #3

    Ah, aproveitando este espaço dos comentários: gostaria de sugerir a inserção de um widget para compartilhamento dos artigos pelas redes sociais, aumentará e muito as visitas do site! Fica a dica! ; )

  4. Gütho Alves em março 19, 2013 às 9:11
    #4

    Bala!

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