O Rock Como Ele é

Armadilhas

A pergunta da pequena tinha a finalidade banal de puxar conversa, mas ele carregava um receio de parecer rockeiro démodé para os mais novos. Mentiu ao omitir Thin Lizzy e disse The Strokes.

Acreditava que havia um Deus acima de tudo. Não que fosse religioso. Bem, durante um tempo, era, sim, de verdade. Fora criado dentro da mesma fé que sua família trouxe da Europa, de modo que, oficialmente, era católico. Batizado, catequizado e crismado sob os mesmos dogmas de outras eras. Mesmo assim, não os seguia. Havia investido tanto tempo de sua vida em salas de aula que se tornara um sujeito racional demais para preservar a religiosidade da herança familiar. Admirava, mesmo assim, a cena na qual jogadores de futebol agradeciam aos céus com os dois braços erguidos pelo gol marcado. Olhavam, achava ele, para algo superior, acima de tudo e de todos, e que estava vindo.

Depois de tanto quebrar a cara, passou da fase de se sentir prejudicado pelas malvadas pelas quais se interessava e começou a atribuir o fracasso dos relacionamentos a algo maior. Frases do tipo “não era para ser assim” ou “o destino não quis” não eram o bastante. Usava as viagens de ônibus que fazia do trabalho para casa para fazer esse tipo de reflexão. Apesar de ter a cabeça desbaratinada por causa das pequenas, conseguia só pensar no assunto, de farta intensidade emocional, no ônibus cheio, voltando da Rua do Carmo. Achava que isso acontecia por causa do por do sol no centro da cidade, que conseguia acompanhar durante a vigência do horário de verão.

Via, da janela do ônibus, andorinhas morrendo na sombra das árvores. Maltrapilhos que, nos países de primeiro mundo, eram chamados elegantemente de “homeless”. Não sabia se tinha que pedir desculpas por ter tantos problemas ante à simplicidade automática das coisas. Pensava que, ali, de pé, a caminho da Rua das Laranjeiras, precisava se resolver com o sexo oposto. Não que estivesse, de novo, caído por um rabo de saia, mas, na maturidade precoce que julgava ter, tinha que dar um jeito no conjunto da obra. Não poderia volta a cair nas próprias armadilhas. Nessas horas o tocador de mp3 selecionava “Downtown Sundown”, do Thin Lizzy. Sim, havia um Deus acima de tudo, por amor.

Com tanta coisa na cabeça, não percebeu que um lugar no 180 tinha vagado. Não fosse a mão da moça a pegar-lhe pelo punho estaria lá, de pé, até hoje. Ficou com vergonha de responder qual música estava ouvindo. A pergunta da pequena tinha a finalidade banal de puxar conversa, mas ele carregava um receio de parecer rockeiro démodé para os mais novos. Mentiu ao omitir Thin Lizzy e disse The Strokes. Achou que, assim, estaria passando uma imagem mais avançada, o que lhe colocaria em igualdade de condições com a já pretendente. Ainda não sabia, mas já começava a cair nas tais armadilhas que prometera evitar. Era o destino do qual não conseguiria escapar.

O apelo para acreditar no amor era maior. Mesmo depois de um dia inteiro de trabalho calorento por conta do condicionamento de ar apenas razoável da firma, topou ficar num dos bares do Centro, a convite da pequena do 180 – não queria saber o nome dela. Na mesa de bar regada a chope estupidamente gelado, a menina falava pelos cotovelos e a conversa era agradável. Mas sentia, desde o início, que algo lhe fazia falta. Passou boa parte da noite tentando evitar óbvio e sentido um vazio sem saber a razão. Quando acordou atrasado para trabalhar, no dia seguinte, a lembrança era curta. Só foi se sentir dono de si próprio de novo na volta pra casa. Precisava do por do sol no centro da cidade.

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Comentários enviados

Apenas 1 comentários nesse texto.
  1. Michel em julho 11, 2014 às 15:44
    #1

    Gostei muito dessa crônica… Sempre que estou compondo algo novo, gosto de buscar temas semelhantes pela internet. E como estou escrevendo uma crônica para o dia mundial do Rock, que está chegando, encontrei esta… Parabéns ao autor e grande abraço!!

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