Devaneio
O delírio era tão recorrente que tinha até uma trilha sonora: “Street Of Dreams”, da fase mais pop do Rainbow, com Joe Lynn Turner nos vocais.
Não se achava um lunático, mas, às vezes, era como se vivesse num mundo de sonhos. Não aquela ilusão de adolescente que precisa ser alguém e imagina já ter conseguido, de tanto que quer provar a própria capacidade para o mundo. Mas o sonho de que sua vida, de algum modo, pertencesse a algum lugar do passado. Ao mesmo tempo, misturava essa sensação com experiências vividas ao longo dos anos. Não que fosse tão velho assim, mas sua cabeça parecia viver numa eterna programação aleatória de um CD player. Fichinha perto do Inferno de Dante. Parecia percorrer a própria memória numa interminável estrada de sonhos.
Achava que já tinha visto aqueles lugares e aquelas pessoas antes. Era tudo igualzinho à nostalgia que guardava de relações passadas. Havia prometido que, se encontrasse mais uma vez uma pequena que viesse a julgar ser o amor de sua vida, não iria permitir o melancólico desfecho das oportunidades que não soube aproveitar. Aproveitara, sim, mas não conseguiu evitar o fim, que, aliás, temia intensamente desde o primeiro flerte. Com tanta coisa rondando a cabeça, só lhe restava retomar, então, a estrada dos sonhos. O delírio era tão recorrente que tinha até uma trilha sonora: “Street Of Dreams”, da fase mais pop do Rainbow, com Joe Lynn Turner nos vocais.
Sempre caía na armadilha de visitar o perfil das ex-namoradas no Facebook. Lá, quase sempre via o retratinho elas marcado com a expressão “em um relacionamento sério” com outro avatar que não era mais o seu. Não satisfeito, vasculhava as fotos em que as desinibidas expunham orgulhosamente relações que seguramente logo teriam fim. Assim como não durara para sempre as que ele aproveitara, mas não o bastante. Se sentia tão mal com o desfecho do relacionamento com aquelas moças que achava que aquilo era regra. Para não enlouquecer, acelerava, tal qual o personagem Kowalski em “Corrida Contra o Destino”, pela já conhecida estrada de sonhos.
Quando isso acontecia, o cenário o perseguia durante todo o dia. Acompanhava inúmeros balancetes no agitado final de mês daquela empresa de contabilidade que o acolhera há mais de 20 anos, sem, no entanto, lhe dar uma oportunidade de promoção. Tudo com as imagens na cabeça. Não podia se queixar das tarefas repetitivas, já que só elas permitiam que ele vivesse aquela espécie de fantasia real. Um mistério que não tinha fim. Passado, futuro e presente: era tudo uma coisa só. Mesmo dentro do 180, depois do exaustivo serão, se sentia como Telma e Louise sendo perseguidas pela polícia, na mesma estrada de sonhos.
No fundo, no fundo, sabia que a coisa toda só ia passar depois de uma noite de sono mal dormida. Mas ele poderia contribuir e foi o que decidiu fazer, antes que a cabeça explodisse de vez. Na falta de saco de se dirigir ao um dos points rock da cidade, prostrou-se no balcão do pé sujo tradicional da Rua das Laranjeiras e pediu uma gelada. Sacou da pasta surrada uma antiga fita cassete, sobrevivente de priscas eras em que – achava hoje – havia sido feliz. Entre um copo e outro, o refrão de “Street Of Dreams” batia forte, até que, na alta madrugada, a espuma branca sob os pés indicava o caminho de casa. Estava, ao menos por aquela noite, curado do inefável devaneio.
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