O Rock Como Ele é

Reserva de luxo

Lembrava também do objeto démodé que dava título à uma música de uma banda desconhecida que não foi em frente nos anos 00. Não foi nem uma grande revelação, mas “Gaveta Empoeirada” era uma canção pop e tanto.

Quando descobria que uma ex estava de namorado novo, sofria. Mesmo tendo a consciência que muitas vezes era ele o culpado do fim da relação, não ficava à vontade com a situação. Ver a pequena nos braços de outrem, nem pensar. Era drama na certa. Com aquela mais jovem, no entanto, era diferente. Já fazia um bocado de tempo que o verdadeiro enlace estabelecido entre eles havia acabado. Nem havia mais falado com ela e já passara por outros relacionamentos. A rigor, havia varrido as boas lembranças para debaixo de um tapete tão grande e pesado que achou que não fosse encontrá-las nunca mais. Isso até descobrir tudo pelo Facebook.

Tinha ouvido da terapeuta de remuneração farta e conselhos duvidosos que toda relação não resolvida com a conversa ficaria armazenada numa região do cérebro até aflorar e se transformar num problemão daqueles. Nessas horas, acreditava na observação da qual sempre duvidava. E lembrava também do objeto démodé que dava título à uma música de uma banda desconhecida que não foi em frente nos anos 00. Chamava-se Piegas e nem foi uma grande revelação, mas “Gaveta Empoeirada” era uma canção pop e tanto, pensava. Tanto que, do nada, a melodia voltou a habitar seus pensamentos, agora divididos com a maldita foto que vira no Orkut.

Tinha, de outro lado, um sentimento aparentemente masoquista que o empurrava cruelmente para a dor. Em vez de simplesmente ignorar o que vira na tela do computador utilizando as ferramentas certas que os sistemas oferecem, decidiu vasculhar a rede atrás de dolorosas confirmações. Precisava ter certeza? Não sabia, mas simplesmente não conseguia evitar. Mesmo que as cartas que lhe diziam ao coração já não dissessem nada, insistia em ir até o fim. Não sem antes fazer descer a primeira gelada, afinal, precisaria de um trago para aguentar o tranco. Não havia rede social que fizesse as vezes do precioso líquido dourado que tanto o seduzia.

Jamais poderia imaginar que o sujeito de sorte que arrebanhara o coração que um dia lhe pertenceu fosse tão parecido com – imaginem – ele próprio. Não fisicamente, claro. Mas era o mesmo tanto mais velho que a moça, tinha formação semelhante e – pasmem – quase todas as inclinações musicais. Era isso que o intrigava, já que, desde cedo, se encantara com o rock e com as danadas das bandas novas e desconhecidas. Pois estavam lá, entre as preferências do aproveitador muitas de suas preferências, incluindo mesmo o Piegas. A essa altura, “Pra Te Esquecer”, a faixa quatro da demo, já rolava no talo. Só então pode perceber que era ele quem a pequena procurava no outro alguém.

Pensou em tomar uma atitude. Dotado de uma inédita valentia, típica de quem se esconde na frente de um monitor, decidiu que iria, ali mesmo, provar para a pequena, que não via há um tempão, que era ele o sujeito certo. Que aquele reserva de luxo não passava de cópia de tudo que ela desejava. E que era ele, afinal de contas, o original. Sacudiu o tapete grande e pesado, revirou a gaveta empoeirada e agitou a região da cabeça onde julgava guardadas as relações mal resolvidas apontadas pela terapeuta. Ao menos era isso que se lembrava ao acordar, de madrugada, estirado no corredor que dava acesso ao banheiro. Arrastou-se até a cama e apagou.

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