O Rock Como Ele é

Expurgo

Não teve dúvidas e colocou na vitrola o álbum “Pyromania”, o blockbuster que catapultou o Def Leppard para um sucesso sem precedentes, em plenos anos 80. Lado A - era um vinil importado -, faixa 2: “Photograph”.

A única coisa que sobrou daquele romance foi uma fotografia. Foto mesmo, feita por máquina fotográfica e impressa em papel fotográfico, como nos velhos tempos. Fora feita por profissional de dotes duvidosos numa daquelas casas noturnas que confundem show com churrascaria. Não era afeito a esse tipo de coisa nem queria que a moça com aquela Polaroid batesse, mas, por insistência daquela que julgava amar, abriu uma exceção. Por ironia do destino, após dura separação a danada da foto acabou ficando com ele. Presa a um porta-retratos na cabeceira da cama, lhe tinha a triste serventia de revolver o passado, para o bem ou para o mal. Mas nunca falhava. Virava para o lado antes de dormir e lá estava a imagem feliz.

Olhava para aquele rosto e se prostrava a sonhar acordado. Não que fosse do tipo romântico, tal qual a professora havia ensinado nas aulas de literatura no segundo grau. Mas achava que algo ainda não tinha sido concluído, embora a separação fosse a mais pacífica possível. Sentado na poltrona da sala, que, morando só, transformou num verdadeiro ambiente para ouvir as centenas de discos que colecionava, não teve dúvidas e colocou na vitrola o álbum “Pyromania”, o blockbuster que catapultou o Def Leppard para um sucesso sem precedentes, em plenos anos 80. Lado A - era um vinil importado -, faixa 2: “Photograph”. Era um daqueles casos em que o fã de rock acha que a musica lhe tinha sido feita sob medida.

Lembrava de como se sentia como uma criança quando estava ao lado da moça. Não era do tipo que se soltava fácil, mas ficava tão à vontade naquela relação que julgava amar de verdade. Pena que só chegava a essa conclusão agora, com tudo terminado, ao olhar para a fotografia. A música estava longe de ser a sua preferida do Def Leppard. Ele nem era tão fã de hard rock e temia ser zoado pelos amigos por gostar de um tipo de música tão achincalhada na adolescência. Na verdade, redescobriu a canção através de uma regravação recente feita pelo genial Carlos Santana, com Chris Daughtry, um cantor de meia tigela revelado num daqueles programas de TV de gosto duvidoso. Sob essas circunstâncias, com o aval do guitarrista, poderia assumir o gosto pelo hard rock em paz.

A protagonista daquele romance era tudo o que ele queria. Pensava nisso já depois de uma ou outra gelada, que, por vezes, julgava indispensável na apreciação do rock. Achava também que, assim, como num suadouro que expurga a febre do corpo, encerraria de vez aquela relação. Ao menos, era uma tentativa, pensava. Nunca tinha atinado para como as letras das músicas das bandas de hard rock falavam de relacionamentos e idas e vinda amorosas. Talvez por isso aqueles moços fortes, mas com vestes andróginas, atraíssem tanto a atenção das meninas para o rock. E, também, causasse constrangimento aos rapazes que precisavam marcar posição naquela fase da vida quando não se é adulto nem criança.

Concluía, como de hábito, que não precisava da fotografia dela. Maturava esse pensamento enquanto trocava discos na vitrola e incrementava o tráfego de latinhas da parte de baixo da geladeira para o congelador, e, dali, para o consumo prazeroso. Depois de tanto tempo olhando para a fotografia, durava um minuto o ato final, no qual bruscamente rasgava o pedaço de papel, de modo a separar as duas imagens. Em seguida, amassava as duas partes, jogava no lixo e, trôpego, ia dormir. No dia seguinte, já sabia onde passar, após o trabalho. No velho estúdio do amigo fotógrafo, que, mais uma vez, iria ampliar o negativo resgatado a duras penas da funcionária da antiga casa noturna.

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