O Rock Como Ele é

Fantasma

Achou estranho quando, logo no primeiro disco, a pequena Pitty tivesse usado esse dito popular numa de suas músicas. Mas gostou mesmo assim.

Decidiu fechar a janela. O vento que subitamente soprou para dentro daquela quitinete alugada por uma pechincha estava incomodando. Não pelo frio em si, mas a friaca intensa – sabe-se lá por que motivo – começava a encher a cabeça daquele candidato a classemediano com poucas chances de ser aprovado com memórias que não eram só memórias. Eram fantasmas que lhe sopravam aos ouvidos coisas que ele nem queria saber. Ou, por outra, não podia se lembrar. Era adepto da filosofia barata de jogador de futebol ao deixar o gramado após sucessivas derrotas, segundo a qual não adiantava se lamentar, mas já começar a pensar na próxima partida, como se a vitória estivesse sempre mais perto que um iminente fracasso.

Quem não gostasse que fosse atrás de outra tese, pensava. Aquela, simples, tosca até, lhe era muito útil. Não que sua vida fosse assim, como o ganhar e perder de jogos de bola. Senão, já estaria rebaixado há séculos - no fundo, no fundo, até estava. O medo era reviver a desilusão que passara com a última pequena por quem se descabelara. Tinha teto de vidro, então não gostava de atirar a primeira pedra. Achou estranho quando, logo no primeiro disco, a pequena Pitty tivesse usado esse dito popular numa de suas músicas. Mas gostou mesmo assim. Tinha o hábito, aliás, de adotar trechos de letras içadas dos rocks que ouvia como verdadeiras filosofias de vida. Era como se os ícones do rock escrevessem aquilo que ele pensava e sentia.

Não que fosse isso algo exclusivo. Acontecia com a maioria dos adolescentes e era característica da juventude, em geral seduzida pelo rock’n’roll. Está certo que já acumulava uma grande quantidade de fios brancos na vasta cabeleira, mas aprendera, também com o rock, que poderia ser jovem por mais de vinte, trinta anos. Ao cerrar a bandeira de vidro e alumínio, apagou a luz. Quando estava escuro, enxergava melhor. Ficava à vontade, sem medo da claridade. Não adiantou. Não havia nada que fizesse a imagem daquela fulana desaparecer da sua cabeça. Nem mesmo se cantasse uma música do Kid Abelha, que, colante, tomaria o lugar da moça naquela região do cérebro. E aí, também, teria outro problema para resolver.

Tudo acontecia – que fique claro – porque, naquele mês, o salário como técnico de contabilidade numa pequena empresa encarregada de livrar contribuintes da malha fina do imposto de renda não fora suficiente para bancar a banda larga do velho quatro oito meia. E o radinho de pilha, deixado de lado há anos, já não funcionava mais. Pane no sistema, alguém o tinha desconfigurado. Ele não sabia, não tinha percebido que, sem os avanços da tecnologia, padeceria do retorno de intensas memórias que ocupariam sua cabeça no lugar dos blips e blops do msn, do orkut, do Facebook, do windows media player, do twitter… Olhando assim parecia até que se lembrar daquele amor não correspondido era a melhor coisa do mundo. Não, não era.

Preferia mil vezes o estar conectado do mundo moderno. Moderno, não - sempre lhe lembrava um amigo chato -, contemporâneo. Precisava, então, exercitar a paciência, buscar a tal saída de emergência. Não era assim tão mal: no dia seguinte, a equipe da empresa responsável pelo restabelecimento da conexão iria até ao número 336 da Rua das Laranjeiras - já havia até avisado ao porteiro - recolocá-lo no rol dos que habitam as profundezas do mundo virtual. Tudo voltaria ao normal. Voltaria a ocupar a cabeça com aquilo tudo e não se perderia pensando em tanta coisa do passado que não lhe fazia bem. O problema era passar aquela noite fria com o fantasma da moça que lhe partira o coração.

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