O Rock Como Ele é

A ligação

Nunca pensou que fosse ter como mantra os versos escritos por uma banda que não tinha, positivamente, o dom de criar boas letras. Muito menos numa época em que Renato Russo e Cazuza traduziam os anseios de uma geração.

Quando o telefone tocou, sentiu um calafrio. Não que tivesse passado a semana toda esperando por um momento lindo, como bem diz a música do Herva Doce, que ele lembrava desde os tempos do segundo grau. Esperava há cerca de um ano por aquela ligação. Parecia dramático, mas, descontando metade do tempo atribuído à saudade do contato anterior, poderia arredondar o tempo de espera para seis meses. O bastante para explicar aquela angústia ante o aparelho inventado – dizia um antigo professor – por Graham Bell. Nunca fora de comemorar datas festivas como a do próprio aniversário, mas sabia que era nesse dia que todas as ex ligavam para dar cínicos parabéns.

Era besteira parar pra pensar, mas aprendera com o anedotário popular que ex era para sempre. Gostaria que a máxima fosse verdade, ao menos de tempos em tempos. Queria ter controle sobre relacionamentos que preservava na memória, mas que, de fato, não deram certo. Senão não haveria as ex - essas danadas - a lhe perturbar mesmo depois de tê-lo deixado sem dó nem piedade. Evitava exagerar no drama, mas não poderia esconder a ansiedade em atender uma ligação banal. O fato é que, ao completar mais uma primavera, no lugar de comemorar como fazia com as datas dos amigos, era acometido por avalanches nostálgicas com firme participação daquelas fulanas.

Como não queria ser o falso viciado daquele quase hard rock, pôs-se a pensar em como o telefone vinha sendo retratado na ficção. Nos últimos filmes e novelas, o aparelhinho, já móvel, acrescentou mais às tramas do que a camisinha e os métodos contraceptivos que invariavelmente falham ou são ignorados em nome do drama. Autores aprenderam a usar as mensagens instantâneas e outras vantagens da telefonia moderna como parte dos roteiros. Pensava nisso e lembrava de Kim Basinger e Chris Evans em “Celular – Um Grito de Socorro”, muito embora tivesse dormido durante a sessão, e saiu sem saber o óbvio final bom-mocista. Tudo isso se passava em alguns segundos. E o telefone, nada.

Sabia que seu coração precisava sofrer, um dia amar, e que era o sentimento que tinha que valer. Nunca pensou que fosse ter como mantra, a essa altura da vida, os versos escritos por uma banda que, se era uma de suas preferidas na juventude, não tinha, positivamente, o dom de criar boas letras. Muito menos numa época em que Renato Russo e Cazuza traduziam os anseios de uma geração. Mas era o que lhe vinha à cabeça enquanto atendia várias ligações de felicitação, mas não aquela que ele tanto desejava. Não que a família fosse grande ou tivesse tantos amigos, mas os que tinham, lhe eram fiéis.

Tudo parecia tão longe na cabeça dele. Não conseguia esconder a insatisfação de si próprio. A noite começava a cair e logo saberia se a espera teria sido em vão. Otimista, apostava que a perseverança era uma virtude, mas sabia que ela, por si só, não lhe garantiria o final feliz dos folhetins. Por isso decidiu usufruir da geladeira abarrotada, por conta de alguma eventualidade que prevenira. Subiu a primeira para o congelador. E depois desceu. E subiu outra. Diante da mudez evidente do aparelho, percebeu que perdera a batalha com a própria ansiedade. Ao acordar na tarde seguinte com um terrível gosto de areia na boca, começou a planejar o próximo ano de espera.

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