Rock é Rock Mesmo

O início da perda dos grandes heróis do rock

Morte de Ronnie James Dio é a primeira de muitas outras que apontam para o final de uma era de grandes nomes do rock em todo o mundo; mas o legado não tem fim

Meus amigos, o que é a natureza. O homem nasce, cresce, vive, envelhece e morre. É o ciclo da vida que acaba, sempre, na morte. Começo essa coluna ausente já há tanto tempo – e as desculpas, todas esfarrapadas, são muitas – com esta filosofia barata pra falar da morte, um mito que acompanha o ser humano desde os seus primórdios. Mito porque, de repente, aquele que está ali do seu lado, desde sempre, passa a não existir mais. Súbito, é preciso se acostumar com a idéia de que, aquilo que sempre foi jamais continuará sendo. Súbito, aquele cuja existência é uma constante, não existe mais. Parece vã filosofia – repito -, mas aquele que sofre com a perda sabe.

Digo isso de uma forma pessoal e sentimentalóide, admito. E me refiro sobretudo ao ente familiar. Em uma curta existência o sujeito simplesmente não sabe como é o mundo sem aqueles que o conceberam e ao lado dos quais foi criado e se fez um cidadão respeitável. É como a rua, a escola, o número da linha de ônibus, a estação de trem e do metrô. A praça, a fábrica, o supermercado, o local de trabalho. Por um momento aquilo tudo parece ser para sempre, e, num único minuto, sabemos todos, pode deixar de existir. Afinal, o pra sempre sempre acaba, né, Renato?

E o rock? Onde está o rock? Pergunta o leitor de longa data, já em desespero. No que eu respondo. O mundo do rock, também, já existia no dia em que eu o descobri. E já era lindo, maravilhoso, repleto de possibilidades e de tal forma imenso que até hoje não cheguei perto de conhecer o bastante desse dia para trás. Imaginem então de lá – o dia da descoberta – pra cá, com uma enxurrada de novas bandas nascendo a cada minuto em cada esquina e em lugares cada vez mais insólitos, numa avassaladora abrangência universal. Por isso – e já escrevi mais amiúde sobre o assunto – sempre temi o dia em que o mundo do rock, tal qual o conheci, não fosse mais o mesmo. Imagine esse mundo sem heróis como Robert Plant, Ian Gillan e Ozzy Osbourne. Sempre temi esse dia, e ele, inexoravelmente, de modo cruel, chegou.

Eis onde eu queria chegar. Não é fácil acordar num domingão e dar de cara com desmentidos sobre a morte de Ronnie James Dio. Muito menos perceber, neles, que era uma questão de tempo saber que um dos maiores vocalistas da história do rock iria partir dessa para outra – dizem - melhor. Pois foi o que aconteceu no meio da tarde. Depois de cerca de seis meses lutando contra um câncer no estômago, Dio faleceu no domingo pela manhã. Sempre se espera, de quem sofre com esta terrível doença, o anúncio da morte. Mas sempre nos surpreendemos com ele. É o mito da morte que ninguém quer que aconteça a ninguém. Para mim, foi o início da perda de meus heróis, o início da mudança num mundo que conheci e que jamais pensei em não tê-lo. E pela ordem natural das coisas, muitas outras perdas virão.

No começo, ficava bravo com o fim de uma ou outra banda. Depois, vi que bandas vão e vêm, só o rock prevalece. Vi que, de um grande grupo que se vai, outro legal pode nascer. Do esfacelamento do Guns N’Roses veio o Velvet Revolver. Do fim do Rage Against The Machine e do Soundgarden surgiu o Audioslave. Do Black Sabbath a extraordinária carreira solo de Ozzy Osbourne e do próprio Dio, e assim por diante. E vi, também, que bandas sempre voltam, cedo ou tarde. Aprendi a importância do legado, que é no fim das contas, o que importa. Somos o que vivemos, mas mais importante é a contribuição que deixamos para quem vem depois. Tudo na vida é assim; no rock também.

A rigor, não era admirador de Ronnie James Dio. Era daqueles que achava que Black Sabbath era com Ozzy e ponto final. Não sei com vocês, caros leitores, mas, comigo, no mundo do rock sempre foi assim. Marcava posição com opiniões consolidadas (sobretudo quando mais jovem) para no futuro ser desmentido pelos fatos. Acontece todo dia. E Dio me conquistou da melhor forma que o rock poderia fazer. Em cima de um palco, cantando pra valer, mostrando simpatia e uma intacta voz. No primeiro dia em que vi o Sabbath ao vivo, no tardio ano de 1992, no Canecão, compreendi de verdade o que significa a palavra “peso” na música, por ter ficado perto da grade, cara a cara com o genial Geezer Butler. Meus conceitos sobre música pesada evoluíram ali. E aceitei, enfim, Dio (sem duplo sentido, por favor) como um grande vocalista, capaz de fazer ótimas músicas e – o mais importante – manter viva a chama da banda que mudou a cara do rock e da música mundial. Nunca tive a oportunidade de entrevistar Dio, mas, em 2004, pude escreve uma coluna só pra ele, intitulada “O Rei Da Voz”, reconhecendo seus indeléveis dotes vocais.

Faz-se do exemplo pessoal o geral, mas o legado de Dio é bem maior do que se pode imaginar. Só saberemos seu alcance com o passar do tempo, ou mesmo nunca poderemos precisar. Pode estar na voz, na música. Na capacidade de ser um grande ícone do rock, sem ter uma personalidade arrogante que marcam essas figuras. Dio sempre foi o reserva imediato no Sabbath e nem esquentava a cabeça por isso. Recentemente, num show do Heaven & Hell, quando os fãs gritavam seu nome, pediu para que gritassem o nome da banda, já que era dela o show. Tenho publicado no Rock em Geral, esta semana, muitas opiniões de músicos relevantes (não só para o rock) sobre Dio, e todos, absolutamente todos, além de obviamente destacar o trabalho musical e a inconfundível potência vocal, salientam o caráter e o jeito de ser “gente boa” de Ronnie – como a maioria o chamava. Até Ozzy, tido como seu eterno rival no Sabbath, prestou emocionada solidariedade. Parece pouco ser “gente boa”, mas num mundo marcado por egos gigantes e provocações de parte a parte entre músicos, não é.

Há que se lembrar, ainda, que Dio foi o sujeito que difundiu um dos maiores símbolos do metal (em princípio), do rock (com o passar do tempo) e das sociedades contemporâneas (em análise mais ampla). Vejam que, hoje, todo mundo, num gesto de mostra atitude mais radical ou como simples cumprimento, estende o punho com a mão com os dedos fechados, à exceção do mindinho e do indicador, eretos. É a reprodução do “Moloch”, sinal que Dio tomou emprestado da avó, que usava, segundo o próprio vocalista, para afastar os maus espíritos. O símbolo virou sinônimo de heavy metal, rotulado até como sendo a reprodução dos chifrinhos do Demo. Só Ozzy, rival de Dio, não o fazia. Agora já pode, Ozzy, fique á vontade. Porque, de agora em diante, é impossível fazer o gesto sem lembrar de Dio.

O legado principal está, evidentemente, na música. Poucos vocalistas na história do rock passaram por grupos tão importantes sem deixar a peteca cair. Dio aturou o genial Ritchie Blackmore, notório chato de galochas, no Rainbow. Encarou o desafio de substituir Ozzy muito bem e ainda manteve uma carreira solo de grande relevância. Nos últimos tempos, era, entre os mais velhos, o que tinha conservado melhor a voz, e não parava quieto. Vejam que, depois de voltar com o Heaven & Hell, não deixou de lado sua carreira solo. Em meados do ano passado, quando Tony Iommi teve que fazer uma cirurgia de implante de células tronco nas mãos, Dio saiu em turnê com sua banda solo e pretendia gravar um novo álbum. Só parou para iniciar o tratamento contra o câncer, mas não deixou que os shows do Heaven & Hell fossem cancelados, até que não houvesse alternativa, no início do mês. Dio ainda emitiu nota em que demonstrava otimismo e prometia “mais turnês, mais música, mais vida e muito mais mágica”. Domingo passado partiu para cumprir sua sina em outro lugar.

Até a próxima, e long live rock’n’roll!!!

PS: Considero o jornalismo-polêmica um grande mal dentro do meu ofício, mas respeito os que fazem dele, por falta de alternativas mais interessantes, sua fonte de renda. Não esperava, entretanto, a deselegância do inefável André Forastieri ao falar de forma inoportuna e tão inexplicavelmente grosseira de Ronnie James Dio, 24 horas após sua morte. Essa obsessão doentia pela polêmica está tirando o pouco de noção que Forastieri ainda guardava. Hora de usar o plano de saúde e se tratar, meu caro.

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Comentários enviados

Existem 3 comentários nesse texto.
  1. Xando Zupo em maio 23, 2010 às 13:52
    #1

    “Para mim, foi o início da perda de meus heróis, o início da mudança num mundo que conheci e que jamais pensei em não tê-lo.”
    Resumiu, além da tristeza pela perda do Dio, o sentimento de muitos, especialmente os da geração que acompanhou tudo isso. Claro, já houveram muitas perdas anteriores mas, no meu caso, compartilho totalmente desse sentimento na frase, especialmente pelos vários momentos ao som de Elf e Rainbow, sem minimizar o trabalho no Sabbath e Dio solo.
    Parabéns pelo texto.

  2. Diego Matias em maio 24, 2010 às 0:03
    #2

    Ronnie foi o primeiro ídolo do rock que vi morrer. Pra mim foi uma perda imensa de um talento insubstituível. Instrumento algum poderá jamais se igualar ao poder da voz de Ronnie James Dio.

  3. Adelvan em maio 26, 2010 às 12:09
    #3

    Cara, excelente, especialmente a alfinetada no Forastieri no final. Eu curto polêmica, acho até que o mundo vive disso, do embate entre os contraditórios, mas polêmica gratuita, só pra aparecer, é dose.

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