O Rock Como Ele é

Demônios

Foi quando no discreto fone preso somente a um dos ouvidos, por debaixo dos cabelos meio crescidos, começou a tocar a melodia sinistra, tensa, de uma música do Thin Lizzy, uma das bandas mais representativas do rock pauleira dos anos 70, embora, para as massas, obscura.

Achava que existia um demônio entre eles. Por mais que tentasse se acertar com a moça, sempre acontecia algo para atrapalhar. Em princípio, culpava a Fulana, como é comum em relacionamentos conflituosos. Na dúvida, aponte para o outro. Ao menos era o que dizia a terapeuta que ele decidira dispensar há pouco tempo, por conta de um aperto de cinto sugerido pelos economistas do governo. Depois, timidamente, procurou respostas para os desentendimentos nele próprio, e quase entrou em parafuso. Sem conseguir entender o que acontecia, na maioria das vezes colocava a culpa num demônio que ia e vinha, causando sérios danos numa relação que – quem diria – já durava mais de dez anos.

Ás vezes tinha medo quando o sol se punha. Tinha a impressão de que ele – o tal demônio – agia durante a noite. Não havia um motivo, mesmo porque muitas vezes os desentendimentos de semanas se resolviam em noites de sexo ardente, como naquela. Achava até graça daquilo. Após tanto tempo vivendo juntos, não tinham perdido a química sexual da qual falava a apresentadora do programa de TV matinal que ensinava às donas de casa o preparo de pratos formidáveis. No outro dia, o mundo parecia uma maravilha. Achava que as mulheres se acalmavam com aquilo mais do que os homens, mas não podia negar que ele próprio também se sentia restaurado. Por isso tinha certeza que esse demônio ia e vinha.

Talvez fosse o tal demônio um redentor. Que, embora tumultuasse sua convivência com a amada, tivesse sido enviado para se divertir. Lembrava de personagens demoníacos camaradas dos quadrinhos como o trapalhão Satanésio e o dócil Brasinha ao formular esse pensamento, enquanto olhava com firmeza para a tela do computador do escritório de administração de pessoal em que trabalhava. De longe, todos achavam que estava compenetrado nas imensas planilhas do Excel com milhares de números para serem verificados. Foi quando no discreto fone preso somente a um dos ouvidos, por debaixo dos cabelos meio crescidos, começou a tocar a melodia sinistra, tensa, de uma música do Thin Lizzy, uma das bandas mais representativas do rock pauleira dos anos 70, embora, para as massas, obscura.

Como sabia que o demônio ia e vinha, estava escaldado. Tentava não pensar nisso para curtir um raro momento de estabilidade emocional e ainda prolongá-lo ao máximo. Mas quando tudo era dito e feito, não havia escapatória: o sol se punha. Passou o dia cantarolando aquela música, a ponto de recordar como e onde a ouviu pela primeira vez, com o grau de imprecisão típico dos mais velhos que começam a perder um pouco a memória. Ela fazia parte do play list descolado da rádio rock que fez a cabeça dele na adolescência, embora Thin Lizzy não fosse muito de tocar em rádio. A lembrança, de pé, no 180, a caminho de casa, só valorizava o trabalho daquela FM que, de fato, havia revolucionado o dial brasileiro.

Achava que existia um demônio entre eles. E tinha medo quando o sol se punha. Por isso, aproveitando o horário de verão da Cidade Maravilhosa, chegou mais cedo em casa. Achou o edifício com um aroma carregado, mas não deu importância. Ao entrar em casa, era como se tivesse ficado séculos viajando e achasse a paisagem completamente diferente. Havia algo de estranho no ar que ele não sabia o que era. Foi obter a resposta ao ler um sucinto bilhete, com a duplicata de uma chave na mão, olhando ao mesmo tempo para as portas abertas de um armário vazio. Descobriu que o demônio, que ia e vinha, tinha partido de vez, levando com ele tudo o que tinha. Abriu a janela e viu o sol se pondo.

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Comentários enviados

Apenas 1 comentários nesse texto.
  1. adauta em julho 21, 2014 às 12:04
    #1

    Achei um máximo, bem que poderia ter crônicas assim.

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