O Rock Como Ele é

O roteiro

Mesmo assim, nessas épocas, não resistia e costumava colocar na vitrola o álbum “War”, do U2, na terceira faixa. “New Year’s Day”. Se identificava quando Bono começava a cantar o verso “nada muda no dia de Ano Novo”.

Não era adepto das comemorações de final de ano. O Natal lhe trazia lembranças de uma infância difícil, nem sempre decorada com os ingredientes que a propaganda faz a sociedade considerar indispensáveis. A virada do ano, por mais que lhe parecesse mais agradável, também não tinha, na cabeça dele, razão de ser. Afinal, a adoção do calendário gregoriano era até certo ponto aleatória, e a vida continuava de uma forma ou de outra. Mesmo assim, nessas épocas, não resistia e costumava colocar na vitrola o álbum “War”, do U2, na terceira faixa do lado A. “New Year’s Day”. Se identificava quando Bono começava a cantar o verso “nada muda no dia de Ano Novo”.

Separadas por uma semana que não passava nunca, as duas festas tinham, depois de tanto tempo, na visão dele, significados diferentes. Da primeira passou a participar, ainda que um pouco contrariado. Com a segunda decidiu se divertir com gosto. Em metrópoles como aquela em que vivia, em pleno século 21, a oferta de diversão era bem generosa, mesmo naquele período do ano, ainda que o foco dele fosse mesmo o rock. Nas últimas viradas, chegou a se acabar em festas nas casas de amigos, points de shows e inferninhos afins. Depois, voltava tudo ao normal. Nada muda no dia de Ano Novo.

Só que aquele ano havia sido fogo na roupa. Também tinha adquirido o hábito de avaliar, durante o período de festas, o ano que estava se despedindo. Jamais se lembrava das resoluções feitas quando o ano começara, mas era imbuído a fazer outras. Ou, quem sabe, repetir as mesmas do ano passado. Pensava assim enquanto caminhava rumo à Praia de Copacabana, onde iria, pela primeira vez na vida, participar de um espetáculo popular de passagem de ano. Só aceitou fazer isso depois que uma pequena exigiu, e ele, não querendo passar por chato no início de um relacionamento, topou e cedeu aos quereres da moça. Nada muda no dia de Ano Novo.

Queria acreditar que a coisa boa que aconteceu durante aqueles últimos 12 meses tinha sido justamente o encontro com a menina que acabara de chegar do interior. Tinha, por isso mesmo, um encanto especial pela cidade grande que ele já não guardava. Sabia, no entanto, que ela estaria recebendo amigos da cidade de origem, o que lhe incomodava um bocado. Tinha calafrios só de imaginar a pequena nos braços de outrem. Alguém que a conhecesse há muitos anos, a ponto de receber uma atenção maior do que aquela que lhe cabia. Sofria da síndrome do “porque não eu” decantada por Paula Toller quando o Kid Abelha surgiu, há mais de 20 anos. Nem o período de festas tirava isso da cabeça dele. Nada muda no dia de Ano Novo.

Por isso, não deu certeza que ia realmente encontrá-la no local marcado. Vestido de preto, como de hábito, via a pequena em cada vestido branco que refletia o brilho da lua. Ao mesmo tempo se lembrava da música do Sangue da Cidade, versão 1982. Nervoso, já vinha dando uns tragos num copo de plástico com conteúdo impróprio para menores. Contabilizava uns seis casais em que a moça, idêntica àquela que desejava, se atracava ardentemente com o rapaz. Sabia que o roteiro de final trágico voltaria a se materializar, de modo que, súbito, deu meia volta e foi para o inferninho rock da cidade. Lá, bebeu todas sem remorso. De manhã, foi visto a caminho do ponto de ônibus, aliviado. Nada muda no dia de Ano Novo.

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