O Rock Como Ele é

O temporal

A chuva passou antes mesmo de ele cantar os versos de “Rain”, do The Cult, coisa que fazia com certa frequência desde que conhecera Ian Astbury e Billy Duff, em cabarés enfumaçados que imitavam os pubs londrinos nos ricos anos 80.

Não era afeito a sair de casa debaixo dos típicos temporais de verão que alagam a cidade, mas, naquele dia, chamou o táxi pelo telefone e foi a luta. O primeiro round começava ainda no ato de chamar o veículo amarelo ovo, uma vez que, como se sabe, é só chover que os incorrigíveis taxistas desaparecem. Devem ir para a casa e deixar a chuva passar, pensava, já a bordo do circular que o acolheu com maior cortesia, embora a caminhada do portão de seu prédio até o ponto tenha lhe rendido as costas e os ralos cabelos molhados. Apostava que o cabelo iria secar outra vez, antes que chegasse ao local marcado para o encontro.

Não poderia falhar. Era um daqueles compromissos agendados via internet que via retratados em inúmeras conversas de amigos, no rádio, no cinema e na TV, mas nunca, antes, teve a coragem de agendar um ele próprio. Tinha o hábito de separar com cuidado os mundos real e virtual, de modo que praticamente vivia um personagem dentro da tela do computador, nas redes sociais, e outro na vida real. Havia a interseção, é verdade, mas só alguém que o conhecesse pra valer poderia ligar os pontos das duas ou mais vidas inseridas em uma só. Não era como Meg Ryan e Tom Cruise em “Mensagem Pra Você”, filme feito muito antes de orkut, facebook, msn e quetais terem virado mania global. Ao menos pensava assim dentro do coletivo abafado por causa das janelas fechadas por conta da chuva torrencial.

Pensava também – e como – na pequena com a qual marcara o encontro. Por vezes, se considerava amplamente interessado por ela, mesmo sem conhecê-la, e, em seguida, duvidava de si próprio. Com era possível nutrir sentimento sem contato presencial – pra não dizer físico? Jamais poderia acreditar numa coisa dessas. Mas, de fato, era o que estava acontecendo. Era homem, e, portanto, sempre achou necessário conhecer e ter atração pelos dotes físicos da moça. Mesmo exibidos a torto e a direito na tela, achava que, ao vivo e a cores, poderia ser tudo diferente. Nesse momento de insegurança, lembrara de uma música do grupo UPI, uma de suas preferidas numa coletânea pau de sebo e que tocava direto nos tempos da Fluminense FM. Que fim teria levado aquela banda que ele julgava, na época, tão promissora?

Pensava tanto que quase passou do ponto próximo ao local marcado – o que seria uma tragédia maior que aquele temporal dos tempos pós derretimento da calota glacial. Havia combinado num movimentado point da cidade. Achava que o ir e vir frenético das pessoas poderia favorecer um mínimo entendimento, ainda mais no caso de as coisas não correrem tão bem quanto se esperava. Só que não havia muita gente no local, muito por causa daquele dilúvio homérico. Mesmo assim, sentou-se na mesa em uma área coberta de um dos bares e pediu a primeira tulipa. Nessas horas, o tempo parecia não passar, de modo que em menos de cinco minutos olhara para o celular, em buscada da hora certa, no mínimo umas seis vezes. E nada de sua amiga virtual se materializar em carne e osso.

A chuva passou antes mesmo de ele cantar os versos de “Rain”, do The Cult, coisa que fazia com certa frequência desde que conhecera Ian Astbury e Billy Duff, em cabarés enfumaçados que imitavam os pubs londrinos nos ricos anos 80. De virtual, aquela mesa molhada de tanta espuma de chope que entornara nas últimas quatro horas não tinha nada. Àquela altura, não havia conseguido identificar a fulana, e certamente, tomado pela leveza dourada e branca, não o faria dali pra frente. Mas foi capaz de perceber o aparelho de telefonia móvel vibrar no bolso, indicando uma mensagem recebida com atraso. Uma, não várias, e da mesma emissora. Com o atraso da modernidade, soube que ela não teve coragem de encarar o temporal.

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