O Rock Como Ele é

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Um tema do Metallica iniciara o ingresso da dúzia de casais que fariam parte do ritual. Depois, fora a vez de Kiss, Beatles, Pink Floyd. Percebera que a palavra “love”, que no passado lhe trazia decréscimo de apreço por este ou aquele grupo de rock pesado, agora fazia todo o sentido.

Não tiveram vergonha de assumir o amor. Foi o que disse o sacerdote ao final da cerimônia, ao mesmo tempo em que o local era convertido de templo sagrado em salão de festas. Era para ser um evento convencional, mas, pensando bem, jamais poderia ser assim se considerarmos que o casal que guardava o papel principal havia descoberto, desde cedo, o rock. Descoberto modo de dizer. Faziam, isto sim, do rock, o protagonista e verdadeiro elo em suas vidas. De modo que não poderia ele – o rock – ficar de fora de um momento tão importante, ainda que numa cerimônia das mais convencionais, na qual eles não tiveram vergonha de assumir o amor.

Era mais ou menos isso que passava na cabeça daquele sujeito de meia idade, que, boquiaberto, não conseguia esconder sinais de emoção e incredulidade. Na infância, fora criado segundo as tradições da igreja católica, na qual chegou a participar até de um grupo jovem. Ao ver negada a sugestão de incluir uma bateria na liturgia sagrada de todos os domingos, porém, desistiu. Aí vieram o rock’n’roll, as drogas e as meninas, e vocês sabem como é. Tudo muda mesmo. Por mais que quisesse prestigiar o casal que conhecera há quase uma década, mas do qual, súbito, se tornara próximo no último ano e meio, estava ali, sobretudo, pelo rock.

Um tema do Metallica iniciara o ingresso da dúzia de casais que fariam parte do ritual. Depois, fora a vez de Kiss, Beatles, Pink Floyd e até a marcha nupcial tocada numa guitarra distorcida. Percebera que a palavra “love”, que no passado lhe trazia decréscimo de apreço por este ou aquele grupo de rock pesado, agora fazia todo o sentido. Até as músicas mais babas que fizeram grupos como Bon Jovi e Twisted Sister triunfarem além dos muros do hard rock agora compunham uma trilha sonora de encaixe perfeito e que contribuía para um momento ainda mais emocionante. Fundiram tradição e vanguarda tão bem a ponto de fazer um velhaco como ele, em pleno enlace matrimonial, se sentir num dos milhares de shows de rock que tanto frequentara ao longo dos anos.

Não se lembrara qual teria sido a última vez que havia comparecido a um casamento, e passou as seis horas que levou para atravessar a pista que divide as duas maiores cidades do país pensando no porquê de estar indo justamente àquele. Não conseguia apresentar, para ele próprio, os argumentos que ele mesmo exigia. Mas concluía que estava, sim, fazendo a coisa certa, mesmo que suas finanças, em tempos difíceis, não fossem suficientes para arcar com tal investimento. Só ali, no meio da cerimônia, teve certeza dos inúteis porquês, e que havia feito a coisa certa. Nunca ficara tão satisfeito em seguir sua falível intuição. Graças ao rock, pensava.

Uma vez iniciado o baile, teve de tudo. De banda tocando sucessos do hard rock ao vivo a um balcão com bebida farta, passando por fantasias démodé que o velho homem do rock seria o único que se recusaria a trajar. Fotos em profusão faziam lembrar que a era da informação era pra valer. Gente de comportamento discreto perdendo a linha no baile. Nessas horas, tudo parecia correr rápido demais. Tanto que, quando se deu conta, desembarcava de volta ao outro lado da pista com um gosto adocicado na boca. Alquebrado, resgatava da memória prejudicada pelo tempo a frase síntese de uma noite memorável. Não tiveram vergonha de assumir o amor.

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