O Rock Como Ele é

Química

Se viciara desde cedo nos shows de rock, e, naqueles locais abafados, o coletivo de camisas pretas, assim como ele, prezava pelo suor, em vez do bom odor.

Cobalto. Era o que tinha lido no frasco do desodorante quando foi ao supermercado. Nunca fora dessas vaidades de ficar escolhendo cheiros ou fragrâncias para usar. Desde cedo achava que o que resolvia era estar limpo, depois de um bom banho de sabonete. Também não se incomodava em usar o mesmo que toda a família – exceto a irmã mais bela – usava naquela casa. E era só. Talco, para ele, era coisa de criança ou, de outro lado, de velho. Perfume, então, nem pensar. Também, pudera. Se viciara desde cedo nos shows de rock, e, naqueles locais abafados, o coletivo de camisas pretas, assim como ele, prezava pelo suor, em vez do bom odor.

Mas a medida em que sua voz foi mudando de timbre ele percebeu que estava ficando rapaz. Passava, já há um certo tempo, a olhar para as moças de uma forma peculiar, e percebia que as pequenas carregavam um outro olhar, diferente do que acontecia antes. Ao menos essa era a sua percepção. Logo viu que não poderia, entre elas, manter um comportamento que ele próprio já considerava rude. Precisava, entre outras coisas, ter um odor agradável. Assim, antes de falar qualquer coisa, ou mesmo que nada falasse, já estaria no páreo. Foi desse jeito que se pegou decifrando aquele elemento químico e testando preferências na gôndola dos desodorantes.

Era sensível, desde pequena. Descobriu isso quando ganhou, de uma amiga da mãe, aqueles estojinhos de maquiagem que as mulheres mais velhas adoram dar para as crianças, como se isso fizesse parte de um ritual de formação da identidade feminina. Tentou inúmeras vezes usar desodorantes e perfumes que a deixasse mais atraente, mas tudo foi em vão. Tinha que se contentar, segundo os especialistas, a usar tudo que tivesse o rótulo “neutro”. Sabonete, xampu, desodorante, nada poderia ter o mínimo de odor. Era tiro e queda, desandava a espirrar. Por isso, ficava enojada com os cheiros alheios. Passava perto de uma menina perfumada e chegava a sentir asco.

Durante o segundo ano, olhara para aquele rapaz como manteiga que se derrete à mesa no verão. Não o conhecia, mas sabia que, no ano seguinte, seriam da mesma turma. No terceiro ano era assim. Tanta gente repetia ou saía daquela escola de ensino puxado que as turmas C e D se fundiam numa só. Não tinha pressa. Em dezessete anos nunca se interessara por nada, então poderia esperar março do ano seguinte chegar para, de forma cotidiana, promover a aproximação com o menino. Achava que assim seria mais natural, ele próprio ficaria mais à vontade.

Não queria estrear sua nova virtude de forma banal. Aquela fragrância precisava de uma data especial, e não havia outra, para um adolescente de família modesta, senão o início das aulas. Não que ele fosse aluno dos mais brilhantes, mas era a escola o círculo social mais intenso. Perfumado, poderia ficar perto das moças sem cisma alguma. Demorou tanto no banheiro que se atrasou, logo na primeira aula do turno da manhã. Àquela altura, não poderia escolher lugar. Pediu licença à professora, e, por sorte, avistou uma carteira vazia bem à frente de uma moça bonita. Numa fração de segundos pôde fitá-la, e sentou-se triunfalmente.

Não é costume entre os professores, mesmo os mais durões, dar muita matéria no primeiro dia de aula. Mesmo assim a mestre de química não esperava ter que interromper sua fala tão depressa, muito menos para atender uma aluna com crise de espirro. Na verdade, era mais que uma crise. A menina estava toda empolada, teve que sair da sala amparada pelas amigas e repousar no posto médico. Depois, foi dispensada pela diretora, com o direito de só voltar no dia seguinte. Antes de ir embora, a inspetora lhe entregou o caderno, onde, ainda na primeira página, se lia a última palavra que escrevera antes de ter nojo por quem, há um ano, se interessava. Cobalto.

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