Fazendo História

U2
A volta dos que não foram

Matéria feita após a cobertura da coletiva que o grupo deu para cerca de 400 pessoas no Copacabana Palace, no Rio, na época do lançamento do álbum “All That You Can’t Leave Behind”. Publicada na Dynamite número 42, de dezembro de 2000. Foto: Reprodução internet.

u2O U2 passou pelo Brasil no final de novembro para divulgar o lançamento do mais recente álbum, “All That You Can’t Leave Behind”. O grupo ficou hospedado no Copacabana Palace, e além de uma entrevista coletiva concedida a toda mídia escrita, televisiva e radiofônica, quatro músicas foram gravadas ao vivo nos estúdios da TV Globo, no Projac, cidade/cenário onde são produzidas as novelas e séries da emissora.

Embora tenha gravado quatro músicas - “Beautiful Day”, “Elevation”, “Stuck In a Moment You Can’t Get Out Of” e “The Ground Beneatrh Her Feet” -, apenas as duas primeiras, editadas e apresentadas separadamente, foram ao ar no programa dominical “Fantástico”. O evento foi presenciado por cerca de quatrocentas pessoas, entre fãs escolhidos pela produção, convidados e integrantes da bateria do Salgueiro, escola visitada por Bono Vox em 98, quando o grupo esteve pela primeira vez no Brasil.

Além da divulgação, o U2 decidiu gravar no Rio as cenas para o segundo clipe de “All That You Can’t Leave Behind”, “Walk On”. E Bono adquiriu uma casa de veraneio em Angra dos Reis, onde pretende passar férias com a família.

Considerado por boa parte da mídia internacional como uma “volta às raízes”, e pela crônica nacional como um “abandono à tecnologia”, “All That You Can’t Leave Behind” não é nem uma coisa nem outra. Representa, isto sim, uma exposição mais crua e direta de uma banda que, mesmo grandiosa, nunca deixou de carregar a simplicidade do rock. Sem as embalagens (impostas e aceitas) de outrora, o U2 se sente livre para ser a boa e velha banda de garagem, numa espécie de volta de quem nunca realmente foi.

NO LIMITE

Todo grupo de rock atinge seu limite técnico, estético, mercadológico, ou seja lá qual for. Quando isso acontece, o artista se acha em uma espécie de beco sem saída. Boa parte deles não encontra a fuga, seu grupo acaba e o dito cujo parte para uma carreira solo, onde tudo de bom ou ruim pode acontecer. Aos que encontram a saída, se depararão com a incompreensão, a cobrança, o questionamento. Mas, via de regra, também a sua sobrevivência, do ponto de vista artístico.

Sim, senhores, eu sei. O termo limite, graças ao uso infame da grande mídia, está completamente desgastado. Mas, acreditem, penso nisso e uso esse mesmo termo há mais de uma década. Por exemplo, o Metallica. Em seu quarto álbum, “…And Justice For All”, de 88, a principal banda do thrash californiano fez um trabalho tão bom que perdeu o rumo em viagens e virtuoses a ponto de encher o saco. Músicas longas, muito bem trabalhadas, mas ao mesmo tempo, muito chatas. Partiram então, com a ajuda do nefasto produtor Bob Rock, para um trabalho, no mínimo, mais acessível. O sucesso resultante já entrou para a história.

Outro: Iron Maiden. Não há dúvidas de que a turnê do álbum “Powerslave”, que resultou no (então) duplo ao vivo “Live After Death”, foi, e é, até hoje, o auge do grupo inglês. Mas o Iron continuou num perfeccionismo técnico (e agradável) em “Somewhere In Time”, de 86, e em “Seventh Son Of a Seventh Son”, de 88, que chegou a um limite tão grandioso que não poderia mais continuar. Resultado: o guitarrista Adrian Smith pulou fora, depois saiu Bruce, o vocalista, o grupo foi atrás de um som mais básico, teve ainda certo sucesso, e por fim amargou um exílio artístico que só teve fim com a volta de ambos.

Para que não me acusem de ficar só no metal, permito-me citar um derradeiro exemplo: The Police. Quando já tinha feito de tudo, influenciado meio mundo com a new wave e revitalizado o rock, logo após a morte de Bob Marley, o trio lançou o fenomenal “Synchronicity”, viagem do baixista/vocalista Sting em cima da obra do filósofo Jung, que unia conceitos estéticos, musicais e políticos, uma verdadeira exceção dentro da música pop. No limite, o grupo acabou, Sting partiu para uma bem sucedida carreira solo, Stewart Copeland virou produtor e Andy Summers vai levando a vida.

Falei disso tudo só para situar o leitor, mas volto ao tema principal, o U2, de Bono Vox e companhia. Só que o grupo irlandês, por possuir uma trajetória mais atual (do que o Police) e abrangente (não pertence ao heavy metal), apresenta peculiaridades que não podem ser deixadas e lado. Primeiro porque, afora os grandes e resistentes medalhões como Rolling Stones e Pink Floyd, por exemplo, foi o primeiro a investir em mega concertos repletos de tecnologia por todos os lados. O segundo seria o Pearl Jam, mas este pirou com o show business. Desde “Acthung Baby”, com a “Zoo TV”, que as turnês do U2 carregam o peso da tecnologia nas costas, com Bono chegando a conversar com fãs, durante o show, via internet. Uma exposição total que aproximava o grupo da tal fronteira – para evitar o sinônimo.

No som, a mesma coisa, uma banda muito simples, e não há como nega que o U2 sempre o foi, apesar de “divulgado” e “comercializado” como uma super banda. Não seria exagero afirmar que os álbuns “Zooropa” e “Pop” não só foram erros do grupo, em nível de encaminhamento musical, como demonstraram o limite (sim, de novo) de uma banda esgotada pelo sucesso e pela grandiosidade, midiaticamente falando, de sua própria existência. Não que as músicas desses álbuns, propriamente ditas, fossem ruins ou não representassem a identidade do U2 – ao contrário. Como já falei acerca desses dois álbuns, repito: são a essência do U2. Mas eles estão contidos (“Pop” especialmente) dentro de uma embalagem imposta, acreditem, pelo sistema e pela tal grandiosidade midiática que fugiu e ainda foge aos controles do grupo. Em suma, o limite, técnico, estético, e, acrescento, pessoal, dispondo minha eterna confiança a Bono, The Edge, Larry e Adam.

CAIDO NA REAL

De fato, o U2 nunca deixou de ser sucesso. Mas uma coisa é se dar bem na vida, outra é estar de acordo com ela e uma terceira é, no caso de uma banda, manter-se com uma certa fidelidade, um mínimo aceitável, que convença os fãs mais exigentes, àquilo que se chama de rock’n’roll. E o U2 se viu, embora óbvio para quem está de fora, do outro lado da linha, às vezes tênue, que separa a atitude rock, o próprio rock, dos excessos e modismos catalisados pela mídia, considerando o sucesso dos irlandeses.

Entretanto, a essa altura, como voltar, com o perdão do clichê, às origens? Essa pergunta não pode ser colocada a um reles mortal como este repórter, que nem tem a simples noção de onde está o seu limite, mas para a própria banda, que esteve no Brasil no final de novembro.

Oficialmente, como divulgado pela mídia, e que você, leitor, viu aos borbotões pelos quatro cantos da sua TV, o U2 veio ao Brasil para divulgar “All That You Can’t Leave Behind”. E foi realmente isso que o grupo procurou dizer, tanto na entrevista coletiva no Golden Room do Copacabana Palace, como nas exclusivas concedidas a renomados jornalistas e veículos, os principais do País. Mas, nas entrelinhas, entre uma tacada e outra na sinuca da Lapa, Bono, além de ter decidido comprar uma casa em Angra dos Reis para passar, com total discrição, as férias com a família, revelou outros fatos, muito interessantes.

Primeiro, a intenção de coletar imagens para um futuro clipe da banda, o que mais tarde não só se confirmou, como pode o clipe se transformar em um documentário, “making of” ou algo de maior duração e produção. Segundo porque, depois da frustrante experiência do show do Rio, em que milhares de fãs com o ingresso no bolso não conseguiram chegar ao Autódromo de Jacarepaguá, Bono e todo no U2 se aperceberam de que algo estava errado com a carreira da banda e não era só por questões contratuais, administrativas ou algo que o valha. Entre idas e vindas no universo da música pop e do show business, entre a chama inesquecível, a árvore de Josué e a atenciosa garota alemã, muita coisa estava fora do contexto original do U2. E mais distante ainda estava o grupo, percepção que Bono só foi ter entre os shows no Brasil, em 98, e o início das gravações que resultaria em “All That You Can’t Leave Behind”.

O show do Rio, pelo fracasso generalizado da organização, e os (foram dois) de São Paulo, pela participação contagiante do público, são citados por Bono em boa parte das entrevistas como sendo o “toque” que fez a banda cair na real, para que ela voltasse a ser “aquele grupo de pessoas que se reunia para escrever músicas juntas, e trabalhar juntas num quarto, não exatamente como numa garagem, mas juntas num único processo de criação”, e superasse o tal limite aqui caracterizado.

COM O DISCURSO PRONTO

Na coletiva, a primeira pergunta para o U2 quem fez foi um famoso e renomado DJ. Ele queria saber por que, em tempos de tanta tecnologia, de globalização e de consideráveis avanços dentro da música eletrônica, o U2 voltava a gravar um disco de rock. Enquanto a atrapalhada intérprete traduzia a pergunta para a banda, outro colega ao meu lado, preocupado com sua cobertura, já respondia, por antecipação: “porque é melhor assim”, e eu acrescento: ora bolas!

Tecnologia foi o tema mais recorrente de toda a entrevista, e sendo ela uma coletiva com cerca de quatrocentas pessoas, não era para se esperar muita coisa mesmo. Mas o próprio U2, calejado com as mazelas do mundo pop, veio ao Brasil já com o script pronto. Seja qual fosse o tema arguído, o grupo tinha é que passar a mensagem: de que não tiveram culpa em relação à falta de organização generalizada que aconteceu no Rio (para o jornal O Globo, Bono chegou a revelar que o grupo não recebeu todo o cachê), e que a banda escolhera o Brasil para a divulgação de “All That You Can’t Leave Behind” com uma forma de se desculpar.

Ninguém é tão ingênuo a ponto de acreditar totalmente nessa história, pois é claro que foram consideradas questões de marketing e divulgação. Mas era percebível que, nas declarações dos irlandeses mais famosos da música pop, havia alguma coisa a mais.

Depois da saraivada de cobranças em cima do lançamento de “Pop”, por ser um disco “eletrônico” e com referências à era da discoteca, o U2 teve de encarar a marcação cerrada em direção contrária, o porquê de um disco “rock”, como “All That You Can’t Leave Behind”. Pior, feita pelos mesmos marcadores. Foi-se o conteúdo, ficou a forma de nossa limitada crônica musical. Mas o fato é encarado com grande naturalidade, pelo não menos expontâneo guitarrista The Edge: “você pode agradar algumas pessoas por todo o tempo, você pode agradar a todos, por algum tempo, mas não consegue agradar a todos o tempo todo. Se algumas pessoas não gostarem desse álbum, tudo bem”. O fato é que, até o fechamento dessa edição “All That You Can’t Leave Behind” já ultrapassara trezentas mil cópias no Brasil, e cinco milhões em todo o mundo, atingindo o topo das paradas em mais de trinta e um países.

Volto a repetir, meus caros: o U2 nunca deixou de ser rock, qualquer que seja, para você, o conceito de rock ou de U2. E, confesso, foram raros os momentos em que presenciei manifestações explícitas de rock’n’roll, tanto em atitudes como em declarações. E poucas me passaram tanta sinceridade e vibração com a de Mr. Bono, ao finalizar a fatídica entrevista: “nos últimos anos o rock tem sido ignorado, a intenção é imitar o que toca nas paradas. No rock há um sentimento que é muito especial e raro, que é impossível de ser sampleado. O rock dá aquela sensação de que você pode mudar o mundo, mesmo que esse mundo seja o seu próprio mundo interior. Nenhuma máquina vai conseguir reproduzir a magia que existe entre quatro caras estarem tocando juntos”. Façamos então, e todos, a lição de casa.

Tags desse texto: ,

Comentário

Seja o primeiro a comentar!

Deixe o seu comentário

Seu email não será divulgado