Fazendo História

Quem sabe faz ao vivo

Eles comeram muita poeira na estrada, tocaram praticamente em todos os canto do país e consolidaram a fama exatamente em cima de suas lendárias apresentações ao vivo. Com seu jeito debochado, os músicos do Cachorro Grande lançam em maio o quarto disco, com um olho na psicodelia e outro na originalidade. Publicado na Revista da MTV 70, de março de 2007.

Posto 9, Ipanema, Rio de Janeiro. O sol ferve os miolos de quem passa pela Avenida Vieira Souto, na beira da praia. Calor de quase 40 graus que fez ressuscitar o chuvoso verão carioca naquele dia parece ter deixado os músicos do Cachorro grande de bode. Enquanto o quinteto tentava se refrescar tomando umas cervejas numa mesa do calçadão, nosso fotógrafo Markos Fortes suava a camisa para convencê-los a largar os copos e se levantar para as fotos. Se o costumeiro visual mod (terno preto e gravatinha fina, criado pelos roqueiros londrinos nos anos 60) com que costumam aparecer por todo o lado, os roqueiros se recusaram a fazer as fotos do jeito que a Revista tinha pensado, talvez pela pressa em voltar ao Estúdio Tambor, na Barra da Tijuca, do outro lado do Rio de Janeiro.

Depois da dificuldade que tiveram em lançar o segundo álbum, de serem recusados por gravadoras sob a desculpa de falta de qualidade técnica e do sucesso do último disco (que teve gravação em estúdio digital e masterização em Abbey Road, o lendário Estúdio dos Beatles, na Inglaterra), o Cachorro Grande fincou residência na Cidade Maravilhosa, onde entrou numa sacrificada rotina no Estúdio Tambor – depois de mal terem saído de uma turnê de 152 shows -, local onde a banda tem se trancado para a gravação de seu mais novo disco, o quarto da carreira e o segundo com uma estrutura profissional.

Com previsão de lançamento para maio, o CD – que ainda não tinha título até o fechamento dessa edição – tem 12 faixas inéditas e traz como novidade a participação de todos os integrantes nas composições, além de um procedimento que mistura a sofisticação do estúdio com as gravações ao vivo dos tempos das vacas magras ou do tempo do cachorro sem dono, como preferir. A banda parece ter experimentado um bocado, sempre tentando fugir dos clichês do rock retrô que a projetou, mas com o cuidado de não deixar escapar a própria identidade.

Muita coisa mudou para os dogs nos últimos tempos. Quando o quinteto chegou ao estúdio Tambor há dois anos, vinha de uma jornada, no mínimo, curiosa. Depois de verem o segundo disco rejeitado pelas grandes gravadoras, foram socorridos por Lobão, que lançou o disquinho deles encartado em sua revista, a Outracoisa. “As Próximas Horas Serão Muito Boas” (2004) emplacou, provando que os executivos das grandes gravadoras estavam por fora, e a repercussão foi tanta que levou a banda a fazer uma grande turnê – pelo menos para uma banda independente - por todo o Brasil. Um dessas apresentações foi vista por Rafael Ramos, produtor das Deckdisc e responsável pelos trabalhos da baiana Pitty. Logo o Cachorro Grande fazia jus ao nome e, de contrato assinado, entrava em estúdio para dar o grande passo que iria consolidar a banda no cenário nacional: “Pista Livre”. Começava ali a parceria que está sendo mantida neste novo trabalho.

TODOS CANTAM

A equipe e o local são os mesmos, a época do ano também – “Pista Livre” foi gerado no início de 2005 no mesmo estúdio, dentro de um shopping center que é na verdade uma mini-cidade projetada, na Barra da Tijuca. “Nesse tempo aconteceram milhares de coisas. Continuamos tocando por aí, cada vez em mais lugares, porque o ‘Pista Livre’ abriu muitas portas, conhecemos mais gente, ouvimos mais músicas, tudo isso acabou mudando o nosso trabalho”, avalia o vocalista Beto Bruno num intervalo das gravações do novo álbum.

A mudança se refletiu até na formação da banda, já que Rodolfo Krieger assumiu o baixo logo que a turnê do último disco, e grava seu primeiro disco como parte integrante do Cachorro Grande. Outro reflexo dessa transformação está presente na vontade da banda de criar algo de novo, mas sem perder a identidade. Rodolfo já mostra os dentes cantado uma música de sua autoria, “Deixa Fudê”, bem na onda da jovem guarda, só que acelerada, que vem sendo testada nos shows. Para quem estava acostumado com o predomínio da parceria à la Jagger & Richards de Beto Bruno e Marcelo Gross, uma novidade: todos cantam as músicas que compuseram. “Tem esse diferencial em relação aos outros discos. O Gabriel (Azambuja, bateria), eu e o Rodolfo, cada um canta uma música, e tem uma instrumental em que o Beto toca guitarra”, conta o guitarrista Marcelo Gross.

A instrumental patrocinada por Beto Bruno, que tem como título provisório “Hoje Meus Domingos Não São Mais Depressivos”, talvez sirva como contrapartida ao fato de ele ter cedido o posto de vocalista para os outros integrantes em algumas faixas. “Se o Gabriel pintou com uma música que ele escreveu, não tem muito a ver eu cantar”, opina o vocalista, “eles cantam muito melhor do que eu, que enganei até agora… É o carisma que eles não têm”, brinca, justificando ainda que, entre as bandas que eles curtem, grande parte tem músicas cantadas por vários integrantes. “Beatles, Mutantes, Pink Floyd, todos cantam. No (The) Who, o Pete Townshend tem músicas tão pessoais que ele nunca deixou o Roger Daltrey cantar”, enumera.

A tal música do baterista Gabriel Azambuja que Beto cita é “Nada Pra Fazer”. O baterista simplesmente chegou com tudo já gravado em um estúdio em Porto Alegre, num processo semelhante ao de “Roda Gigante”, que Beto levou só um dia para fazer. “Eu tinha uma música em casa, vi um vídeo do Ian Brown e resolvi fazer um lance mais eletrônico. Gravamos tudo no estúdio de um amigo, com uma bateria acústica, mas trabalhada eletronicamente”, explica. Nada, entretanto, que retire da banda a “cara” que ela sempre teve. “Cada disco é um reflexo daquilo que a gente ouve durante a época em que fazemos e concluímos as músicas”, define Marcelo Gross. “Sempre buscamos ouvir coisas diferentes dentro das mesmas coisas, se é que tu me entende”, completa, com seu típico sotaque gaúcho.

AO VIVO

O retórico guitarrista deu a entender é que o som retrô da Cachorro Grande (fincado nos anos 60) continua o mesmo, mas sempre aberto a novos elementos. Tanto que Ian Brown, citado por Azambuja, é referência também em “Me Faz Continuar”, um bom exemplo da presença desses novos elementos e séria candidata a primeiro single. Os rapazes foram pinçar lá dos anos 90 a batida semi-eletrônica que dá o tom da música. “Isso é uma coisa que a gente curte muito, faz um tempo que a gente vem ouvindo Primal Scream, redescobrimos o ‘Screamadelica’ (1991), que tava lá guardadinho, e quando ouvimos, chapamos”, conta Beto Bruno, revelando uma das fontes onde todos beberam para a feitura deste disco. “Fizemos sem bateria eletrônica, tocando mesmo. Aí no final parece ser bateria eletrônica, mas não é, como as coisas do Beck”, emenda Gross, entregando outra. A base da música foi toda gravada ao vivo, e depois rolou um looping de outra gravação, com o baterista Gabriel Azambuja tocando junto como pandeiro de Beto Bruno.

A música abre o CD e serve para exemplificar a forma como a banda costuma trabalhar. “Me Faz Continuar” chegou no estúdio como se fosse um rockão clássico do Cachorro Grande, e saiu de roupa nova, com a tal batida. “Deixamos propositalmente várias coisas acontecerem no estúdio, chegamos com os esqueletos das músicas, para que tudo acontecesse aqui dentro”, explica Marcelo Gross. E as coisas aconteceram mesmo, a começar pelo procedimento adotado desde o início. Em vez de cada um gravar a sua parte em separado, ouvindo uma fita guia, como se faz tradicionalmente na produção de um disco, o produtor Rafael Ramos montou um set de gravação dentro do estúdio, e todas as músicas foram gravadas ao vivo, uma por dia, inteirinha.

Assim, muito do que está no CD saiu dos primeiros takes de gravação. “Foi tudo organizado de uma forma que hoje no Brasil você não vê nenhuma banda trabalhar”, diz Rafael. “Eles já estão ensaiando essas músicas há um tempo e no final das contas começamos a ver o resultado trabalhando em cima de todos tocando junto”. A banda encarou o processo com tranqüilidade. Afinal, concentrar-se numa música só até finalizá-la foi fácil. E se tem uma coisa que o Cachorro Grande sabe fazer é tocar ao vivo. “Percebemos que se tu der a atenção para uma música por dia, ela vai render bastante, em vez de embaralhar a cabeça e fazer várias coisas”, defende Marcelo Gross. “Juntamos tudo: gravamos ao vivo, mas também tirando os timbres de guitarra em estúdio. E se a gente é tão bom ao vivo, por que fazer diferente?”. Faz sentido.

HISTORINHA

Nem tudo, no entanto, ganhou cara nova no estúdio. “Conflitos Existenciais”, por exemplo, a segunda música do álbum, resgata o ouvinte para o universo dos gaúchos. É uma porrada típica do Cachorro Grande com a base cheia de groove, black e soul dos anos sessenta e solos de guitarra a dar com o pau. “É bem no estilo clássico do Cachorro, você ouve e fala: é os caras”, define Gross, sem titubear. Já a última, “O Certo e o Errado”, tem a mesma função: mostrar que ali se encerra mais um disco da banda. Nas duas o guitarrista se supera em solos, que, quando tocados ao vivo, devem se transformar em animadas jam sessions. Mas por trás dessa música tem uma historinha das boas. Quem conta é o baterista Gabriel Azambuja: “Estávamos ensaiando em Porto Alegre. Quando saímos da sala de gravação os donos do estúdio estavam discutindo e um falou para o outro: ‘o engraçado é que tu tá sempre certo e eu tô sempre errado’”. Coincidência ou não, a mais perfeita tradução da frase estava justamente nas discussões travadas por Beto Bruno e Marcelo Gross, entre uma e outra composição. “Piramos com essa história e eu fiz a letra, acabou sendo um diálogo entre nós dois na parceria das composições. O mais engraçado é que até hoje ele acha que tá sempre certo, e eu tô sempre errado”, conta Beto, entre gargalhadas de todos.

Como de hábito, com o Cachorro Grande não há uma conexão direta entre as letras das músicas, daí a demora em achar um bom nome para o disco. Às vezes os integrantes da banda ficam um tempão tentando finalizar uma música e não conseguem e em outras a história aparece do nada, como em “O Certo e o Errado”. “Tem letras que não desencravam, e numa rodada de chope pode rolar uma daquelas que acontecem em dez minutos. Damos muito valor para isso, porque tem a ver com o momento; se a letra não sai, é porque não é pra ser”, acredita Beto Bruno. Uma das últimas a ser composta aconteceu bem rapidamente, durante o cotidiano do vocalista. “Um dia acordei, fiz uma base de violão, eram duas partezinhas de músicas que eu juntei. Combinou e eu fiquei muito feliz, ficou na minha cabeça enquanto almocei. A letra rolou de tarde. Fui para a casa do Gabriel gravar, chamei o Gross pra botar as guitarras, gravei as vozes, ligamos para o Pedro (Pelotas, pianista) pra botar um pianinho e no final do dia tinha uma música pronta”, descreve o vocalista.

A música é a já citada “Roda Gigante”, uma das preferidas de todos, e que, de certa forma, sintetiza o disco justamente porque carrega um elemento comum identificado durante todo o período de gravação: a psicodelia. Tanto ele quanto Marcelo Gross, os dois principais compositores, concordam que se trata e um disco de rock psicodélico, não só pelas referências, mas também pelo processo de construção do disco, repleto de experimentações que resultaram nessa variedade sonora. “Ninguém aqui disse não para qualquer idéia, tudo foi tentado. Na dúvida entre uma guitarra e outra, fazia-se com as duas”, desenvolve o produtor Rafael Ramos. “Pela primeira vez eu participo de um disco em que os integrantes estão muito focados na idéia de que tem que vir algo novo”, reforça.

“Nunca imaginei que depois de velho a gente ia voltar a ser psicodélico, que era uma coisa que rolava bastante no início da banda. Mas aqui tá rolando uma psicodelia desvairada”, acredita Beto Bruno. “É psicodélico, mas tem um embalo black, uma cozinha de negrão, de baixo e bateria”, completa Gross. “É como se fosse uma coletânea do Cachorro Grande com músicas inéditas, porque tem músicas aqui que remetem ao outros três discos”, acredita Beto.

Marcelo Gross concorda e discorda, para não perder a viagem. “Tem músicas que não são psicodélicas, então não dá pra chamar o disco todo de psicodélico”. Ele exemplifica: “tem uma música que eu canto que é um rockão do tipo Lou Reed em ‘Transformer’”, se referindo a “O Que Você Tem”, cantada numa linha mais falada, tipo contador de histórias. Outra da série música-para-compor-o-elenco-mas-que-pode-ser-bacana é “Na Sua Solidão” (nome provisório), um country meio Bob Dylan que conta até com a uma harmônica, tocada por Gross.

Psicodélico ou não, uma coisa é certa: estamos diante de um disco em que todos chegaram ao limite. Não só pela história de a banda ter experimentado tudo, mas também de ter levado as idéias e o desempenho de cada um ao máximo que poderia ser dado. Ao menos essa é a sensação de todos nos últimos dias de trabalho no estúdio. “As músicas que são porradas são mais porradas do que em qualquer outro disco; a balada é a coisa mais delicada que a gente já fez; a coisa psicodélica é a coisa mais psicodélica de todas, tudo foi feito ao extremo”, define Beto Bruno.

Para quem tiver um pouco mais de paciência, uma jam session que rolou durante o período de gravação, registrada sem a banda se dar conta, periga ser editada como faixa escondida e pode enfatizar essa tal psicodelia. Mas isso é um mero detalhe num disco que tem tudo para levar o Cachorro Grande a ocupar espaços ainda maiores do que a banda já conseguiu. O resultado será conferido daqui a exatos dois anos. Podem marcar na folhinha.

FAIXA A FAIXA

Confiras as músicas que estão no novo disco do Cachorro Grande

1. “Me Faz Continuar”: Tem batida retirada de bandas britânicas dos anos 90, como Stone Roses e Primal Scream. Pode ser o primeiro single.

2. “Conflitos Existenciais”: típico rockão do Cachorro Grande, impossível não identificar logo de cara.

3. “Roda Gigante”: Considerada a mais psicodélica do disco, é a que sintetiza bem este novo trabalho da banda. Outra forte candidata a single.

4. “Sandro” (nome provisório): Fala sobre a morte, se parece com Beatles fase “Revolver”. Tem arranjo com órgão Hammond.

5. “Deixa Fudê”: Composta e cantada pelo baixista Rodolfo Krieger, tem forte influencia da jovem guarda, apesar de ser bem acelerada.

6. “Na Sua Solidão” (nome provisório): Country à la Bob Dylan/NeilYoung que tem até Marcelo Gross tocando harmônica.

7. “Hoje Meus Domingos Não São Mais Depressivos”: instrumental feita por Beto Bruno, que inclusive tocou parte das guitarras.

8. “Nunca Vai Mudar”: Balada psicodélica inspirada no “White Álbum”, dos Beatles. Outra que cresceu no estúdio, lembra “O dia de amanhã”, do primeiro disco do Cachorro Grande.

9. “Quando Amanhecer”: Involuntariamente parecida com Neil Young, ganhou uma roupagem nova no estúdio. Meio glitter inglês com country americano.

10. “O Que Você Tem”: Rock simples e com letra mais falada que cantada, lembrando Lou Reed no disco “Transformer”.

11. “Nada Pra Fazer”: Foi toda composta e gravada pelo baterista Gabriel Azambuja num estúdio em Porto Alegre, depois de assistir a um vídeo de Ian Brown (ex-vocalista do Stone Roses), e finalizada no Rio.

12. “O Certo e o Errado”: Outra típica paulada da banda, tem letra que fala das discussões entre Beto Bruno e Marcelo Gross durante o processo de composição.

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