No Mundo do Rock

Mustang cor de sangue

Trio garageiro chega ao terceiro álbum, “Tá Tudo Mudando Mas Nem Sempre Pra Melhor”, afirmando a tríade barulho, protesto e cultura pop. Fotos: Marcelo Pereira e Michael Meneses (ao vivo).

O power trio detonando ao vivo

O power trio detonando ao vivo

Se fôssemos aqui falar de uma lenda chamada Carlos Lopes conseguiríamos muito mais manchetes e frases de impacto. Mas como lenda não faz revolução nem paga as contas, é preciso estar atento e forte. E fazer algo, sempre; não pode mais ficar parado. Assim, Carlos arregaçou as mangas, e como ele mesmo diz, está reescrevendo sua própria história. Um dos capítulos – ou vários deles – está sendo preenchido com o Mustang, um trio de formação mutante que vai fundo no rock simples e garageiro do período pré-punk, mas que, feito hoje, assimila tudo que sua própria contemporaneidade pode oferecer.

O primeiro registro da banda foi uma demotape lançada em 2000, quando, depois de fechado o caixão da Dorsal Atlântica, Carlos Lopes militava também numa outra banda, a Usina Le Blond. Na seqüência o Mustang enfileirou três álbuns: “Rock ‘n’ Roll Junkfood” (2001), “Oxymoro” (2004) e agora o recém lançado “Tá Tudo Mudando Mas Nem Sempre Pra Melhor”. O primeiro álbum ganhou duas versões em vinil: um vermelho, com letras em português, e um “picture disc”, em inglês. Quem pensa que a opção pelo vinil é coisa de mercado se engana; é apenas uma outra faceta da banda, que além do barulho e das músicas de protesto e de cunho pessoal, vai fundo na memorabilia, com material gráfico que parece ter saído de um museu da música pop. Tudo, entretanto, nasce na cabeça e sai dos alfarrábios do próprio Carlos. A torta de morango que ilustra a capa de “Ta Tudo Mudando…”, por exemplo, vem de um sanduíche de pneu de bicicleta já conhecido desde os anos 60.

Nessa entrevista, Carlos tenta explicar o inexplicável: de onde tira gás para manter viva essa alquimia de referências que inclui ainda performances empolgadíssimas sobre o palco, onde todos, invariavelmente, trajam vermelho. Vermelho mustang. Mustang cor de sangue.

Rock em Geral: Esse é o terceiro disco do Mustang, e a formação sempre varia. Podemos considerar o Mustang um projeto solo seu?

Carlos Lopes: A formação varia pela quantidade de dinheiro investida na história. Se você não está envolvido nas coisas pela fé ou amor, está pela grana - no segundo CD da banda, há uma composição chamada “Tudo Pelo Dinheiro” sobre esse assunto. E a falta de dinheiro separa as pessoas. Se você conversar com outra banda e se forem sinceros contigo, você também vai saber que em qualquer grupo musical, geralmente um (ou dois no máximo) faz tudo e o resto vai na onda. Se a banda der certo estão ao teu lado, caso contrário passam para outra. Exatamente como político que muda de partido. Isso sem contar o nível de interesse, ânimo, disposição, etc. No meu caso, eu acumulo as tarefas de músico, compositor, produtor musical e executivo, empresário, designer, promoter. Um correspondente disse que sou o “one man band”. Achei engraçado. Mas não se pode esquecer que cada indivíduo é um universo, cada novo músico estimula você a propor e ousar novos caminhos, assim como a sonoridade da banda muda. Novos integrantes são novas perspectivas. E para mim o músico não pode ser medíocre e nem virtuose em excesso. Tem uma medida ideal para que o rock role solto.

RG: Muitas pessoas defendem que esse som garageiro feito pelo Mustang “pede” letras em inglês, e no início você tinha várias nesse idioma. Por que você se decidiu em definitivo pelo português?

Carlos: Sobre os discos anteriores do Mustang, que continham versões em inglês, também foi uma experiência. Cada disco é uma experiência. Nada impede que eu grave o próximo em japonês. Nada impede que eu nem toque rock. Cantar em português é exatamente o que o movimento punk do final dos anos 70 mais me influenciou. Tanto na atitude não convencional (o punk de mais de 20 anos, não esse de hoje em dia) como na mescla de “foda-se” com sinceridade. Quando uma banda de uma gravadora maior canta em português, ela almeja atingir a massa, por mais que falem ao contrário. No meu caso eu amo cantar em português, desenvolvi uma métrica de cantar sincopada, que se tornou outra marca da minha forma de compor. É bom ser você, ter estilo, ser ímpar. Também quero ser entendido, desejo que esse humor das letras do Mustang, o duplo sentido (uma característica muito forte da banda) seja captado para que possamos rir juntos dos nossos maus modos.

RG: Uma vez você disse que não gostava de trabalhar muito as músicas no Mustang; era melhor gravar logo para manter a essência da coisa. Nesse disco, entretanto, as músicas parecem mais bem arranjadas e ensaiadas. Você mudou de opinião ou é só uma impressão?

Carlos: O que eu disse é algo como “estilo é nada, composição é tudo”. Melhor entender assim. Nós evoluímos musicalmente, o que é natural. Dá para ver isso no disco. Ensaiar a gente ensaia, mas mais para libertar do que para aprender. Em todo ensaio rola uma jam, eu sempre aviso que “tudo pode acontecer”. Surpreender deixa a música viva, real, orgânica. Eu não sou um músico de rock ensaiado que toca o esperado. Quanto ao baixo gravado nos CDs, parece mentira, mas ele é gravado ao vivo, depois que eu e o baterista gravamos uma base guitarra-bateria um ou dois dias antes. Wlad Vieira, meu baixista favorito, tem uma técnica espetacular, que se encaixa na banda como uma luva. Mas ele nunca sabe o que o espera. Eu toco a fita guitarra-bateria uma vez, ele pede para que eu faça mímica e ele toca olhando para os meus dedos, sem nunca ter ouvido a música antes e ainda improvisa igual a um louco. Eu amo isso. Ele não tem o lado punk, e nem o entende, mas ele é o cara que toca o nosso lado 60/70 como ninguém: de John Paul Jones, Geddy Lee, Glen Hughes a Jaco Pastorius com uma mão na frente e outra atrás. Eu peço baixo Paul McCartney ele faz (“Respeitar”), baixo U2 (“Despertar”), funk (“Cinco Contra Um)”, “solta o dedo” (“Geração Perdida”, “Outro Lugar”). Mas ele não toca ao vivo conosco por questões financeiras, apenas isso.

RG: “Geração Perdida” parece muito com uma música do Iron Maiden, “Invaders”, do álbum “The Number of The Beast”. É isso mesmo?

Carlos: Na verdade o riff principal pertence a uma música da Dorsal Atlântica, nunca gravada, pré primeiro disco chamada “Noite”. Ao fazer o Mustang, retomei um caminho musical que poderia ter seguido anteriormente, mas que na época não me interessava.O solo, aí você acertou, é meio Maiden. Eu amo os dois primeiros discos deles, com aquele som e gravação, riffs rebuscados e crus ao mesmo tempo. Na verdade eu adoro NWOBHM. Bruce Dickinson, o vocalista do Iron, cantava no Samson em 1980. Era foda! O Mustang é tudo isso e muito mais: garage, rock, punk, metal, progressivo, rock brasileiro, psicodelia. Quer dizer: um grande foda-se.

RG: Se “Geração Coca-cola” foi o símbolo da revolta de quem viveu sob a ditadura, “Geração Perdida” tem o mesmo significado, só que em tempos de desilusão com a democracia?

Carlos: Ao escrevê-la não estava desiludido com a democracia, mas sim com os partidos políticos, ou mais especificamente com a esquerda que está no poder. É chavão reclamar disso, mas é verdade. Que bela esquerda é essa que utiliza os artifícios da velha direita para se manter no mais alto cargo da Nação? Mas gostei da sua análise. No “vamos-ver” o seu ponto de vista é a forma mais correta de entender a letra. Eu odeio ditadura, vivi em uma, mas também compreendo que a democracia é uma grande mentira. Se esse sistema político é baseado na vontade da maioria e se nós sabemos que a maioria é influenciada por diversos fatores promocionais e sentimentais, então qual é a conclusão? Nelson Rodrigues dizia que a “maioria é burra”, mas ele teve o filho torturado pela repressão, após ouvir do próprio presidente que não havia ditadura no país.

"Sou Deus e o Diabo na terra do sol"

"Sou Deus e o Diabo na terra do sol"

RG: Até que ponto a história contada em “Janis Joplin” é verídica?

Carlos: A letra é verídica. Ela esteve aqui no Carnaval de 1970 para dar um tempo da heroína. Os artistas estrangeiros vinham para cá (os Stones inclusive) para fugir da polícia ou das drogas. Mas quando Janis cá esteve foi expulsa, primeiro do Hotel Copacabana Palace, e depois do baile do Municipal, porque era feia. Ninguém sabia quem era ela ou o que fazia da vida. Uma das idéias era que ela aproveitasse a estadia para cantar em um show gratuito na Praça Nossa Senhora da Paz, em Ipanema, coisa que nunca rolou. Sobre a expulsão do baile de Carnaval ela ficou tão puta que jogou uma garrafa de pinga na cabeça do povo. Depois do Copacabana Palace se hospedou de favor em uma quitinete no Leblon. Voltou para os Estados Unidos, gravou o seu último disco e morreu, dizem, de overdose. Eu não acredito. Acho que a mataram.

RG: A letra de “Sexo Virtual” é autobiográfica?

Carlos: É inspirada nas histórias de dois amigos. Eu não freqüento lista, nem fórum de discussão. Prefiro solidão, livro e cinema mudo. Sou um inocente nessa área de relacionamentos virtuais e pretendo ser para sempre. Eles, os inspiradores da letra, me contam que saem com mulheres sempre casadas com filhos grandes de classe média, informadas, e que traem por falta de amor, insatisfação, mas preferem manter o casamento. A Internet não piorou o mundo, só facilitou as piores qualidades das pessoas.

RG: As letras em geral são de cunho muito pessoal também, ou giram num universo que lhe parece peculiar. Elas são uma espécie de “autobiografia ambulante”?

Carlos: Sempre é autoral, isso é fato. Não dá para ser diferente. Só posso falar sobre o que vejo e acredito. Antigamente escrevia procurando uma solução, achava, assim como acho até hoje, importante que a arte sirva não para alienar, mas para conscientizar. Mas não quero ser um trotskista chato, optei por esclarecer com humor. Como sabemos, o humor também é muito cruel. Hiena come merda e ri.

RG: A capa do disco lembra a capa do “Let It Bleed”, dos Stones. É uma espécie de referência, sátira, ou só coincidência?

Carlos: Toda a iconografia do disco (Stones na capa, Elvis na contracapa, rótulo do selo pirata do porquinho da Swimmin’ Pig) pode ser considerada uma homenagem ou uma sacanagem. Fico com as duas opções.

RG: O encarte é uma verdadeira enciclopédia pop, tem vinis, fitas de rolo e outras coisas retrô. Como você concebe esse tipo de “arranjo”?

Carlos: Todas as imagens foram fotografadas em um bar/loja/sebo do centro de São Paulo. O dono do bar aparece empunhando uma faca no berço do CD. Perguntei a um amigo fotógrafo onde poderia encontrar um gramofone, ou algo velho e inusitado em São Paulo. Ele me levou nesse bar, que por coincidência é uma rua cheia de teatros cheios de peças com jovens atores e perto da casa da Rosana Star. É novo e velho para não botar defeito. Assim como a capa original dos Stones (“Let It Bleed”) representava o momento que eles viviam (estrada, cinema, falta de tempo) em 1969/70, a minha versão representa a idéia agregada ao título (“Tá Tudo Mudando… Mas Nem Sempre Pra Melhor”). Na capa do Mustang aparecem fitas de VHS, cassete, LPs, bolo de padaria. O que quero dizer é que eu não abro mão do que é bom porque o moderno me diz que estou ultrapassado ou fora de moda. No momento que estou te respondendo, estou ouvindo fita cassete.

RG: Durante muitos anos você foi um ícone do heavy metal, e já há algum tempo mudou de ares. Como você está se sentindo agora, já com uma certa bagagem com o Mustang?

Carlos: Eu consegui reescrever minha história. Tive que ter coragem, não foi fácil, assim como ainda não é, mas quando olho os três discos do Mustang e os três da Usina, em cinco anos, sei que fiz a coisa certa. Estou livre.

RG: Ter tocado heavy metal, que é um subgênero do rock mais técnico, facilita as coisas pra você hoje, como músico e compositor?

Carlos: Nem sempre. Tive que me libertar de certos convencionalismos, refazer alguns e respeitar outros para me recriar. Apenas fui fiel ao meu coração. Sou um artista, pensador e compositor. Não dá para ficar preso eternamente a um sapatinho de cristal ou a uma abóbora que nunca vira carro. A arte é um ser vivo e precisa ser alimentado, muitas vezes com incompreensão, loucura e dor. Não estou nessa para morrer velho, estou nessa para morrer todos os dias e renascer como uma fênix. Não tenho medo de errar.

RG: Que fim levou sua outra banda, o Usina Le Blond?

Carlos: Como uma banda apenas já custa muito investimento financeiro e pessoal, vou mantendo as duas como posso. Como tenho um contrato com a Monstro para lançar o Mustang, essa é a prioridade no momento. Por exemplo, só para você ver como tenho minhas artimanhas, considero a faixa “Cinco Contra Um”, uma música feita para a Usina, mas que foi registrada pelo Mustang.

RG: Nos shows vocês se vestem de vermelho e você, em especial, tem uma performance até andrógina, de certa forma, tira a roupa e tudo. Isso é tudo planejado? Dependendo do show rola mais coisas? De onde vem isso tudo?

Carlos: O vermelho chama para a guerra, para o socialismo, para a vagina, para a boca, para a língua. Comecei com isso porque em uma fraternidade espiritualista que freqüentava, me aconselharam a não usar calça vermelha para não estimular a zona erógena através da cor vermelha sobre o chacra. Começou assim. Trabalhei em centro espírita durante muitos anos, além disso todo artista é um exibicionista, mesmo os que dizem que não. Eu sou uma soma. Show para mim é uma sessão espírita. Se a espiritualidade me proteger, eu posso ser e fazer tudo para demonstrar liberdade e libertação através dos gestos, dança, músicas e palavras. Eu não sou inofensivo, nem programado. Sou um vulcão que pode explodir e queimar todo mundo com lava quente ou esperma, se assim preferirem. Sou Deus e o Diabo na Terra do Sol.

RG: Isso tem a ver com a música “Rosana Está?”, que você fez para um travesti?

Carlos: Rosana, um ex-Paquito da Xuxa, foi utilizada para simbolizar o conflito de ser quem você é contra o que o mundo quer que você seja. Não estou defendendo os travestis, estou defendendo o direito de ser quem você quiser ser. Ela chorou quando mostrei-lhe a música.

"Estou nessa para morrer todos os dias e renascer como uma fênix"

"Estou nessa para morrer todos os dias e renascer como uma fênix"

RG: Com a experiência do mercado do rock, e pelas suas últimas andanças, onde você acha que o Mustang se insere no rock independente de hoje?

Carlos: Não sei. Classificar é coisa para imprensa. Não sou alternativo, não sou hard rock farofa, nem rock clássico, nem punk, nem homem, nem mulher, nem viado. Que gostem do meu trabalho pelo o que ele é, sem convenções. Paguem o ingresso, se divirtam comigo e comecem o dia seguinte com um estado de espírito melhor.

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