Rock é Rock Mesmo

Mito é mito e ponto final

Falamos muito de Kurt Cobain nos últimos dias, com o aniversário de dez anos de sua morte, mas não podemos esquecer que Renato Russo é, também, um dos grandes heróis dos quais o rock hoje se ressente. Publicado originalmente no Dynamite on line.

Unanimidade. Taí uma coisa difícil de se conseguir no meio da música pop. Se ela é burra como dizia Nelson Rodrigues (cuja citação nesse caso é, sim, um chavão unânime) nunca saberemos. Mas que é difícil encontrar um grupo ou artista que todos gostem, isso é. Mesmo porque o “todos” por si só já é uma coisa relativa. Nem os Beatles com seus lá-lá-lás antes do primeiro baseado conseguiram a façanha.

De outro lado, nós, que gostamos de música, do rock e da música pop, e estamos sempre prontos para discutir sobre o melhor disco, a melhor banda, sempre criamos barreiras para que essas unanimidades ou semi-unanimidades existam. Uso o “somos” aqui para ser simpático, porque eu mesmo jamais fui um apologista de termos criados pela mídia como “ame ou odeie” para designar este ou aquele artista. A expressão, sob a mais atenta observação, é usada por um crítico de redação para discordar, deliberadamente em favor do fortalecimento de seu nome, das unanimidades que se impõe no mundo do rock. Ao mero sinal do surgimento de uma possível unanimidade, lá está enclausurado profissional apontando quem odeia aquela banda que, no momento, todo mundo ama. Pelo menos até que alguma gravadora lhe pague um cachê (minguado, é verdade) para ele falar bem dessa banda no release do próximo lançamento.

Discordar é bom, aliás, é o que eu faço religiosamente aqui a cada semana. Mas, desculpem, unanimidades existem sim, e se não existem, faço uso da teoria do limite matemático para que elas existam: sem elas, adotemos o que mais próximo delas há. E é aí que entra o fenômeno Legião Urbana. No dia 11 de outubro de 1996 a morte de Renato Russo colocava fim na banda de rock mais popular do País, e que conseguiu, fato raro, fundir qualidade e popularidade, fazendo o mais simples dos rocks de três acordes. Mas a data marca também o início da mitificação de Renato e da Legião, e hoje tem gente aí que ainda era muito pequeno em 96 ou sequer tinha nascido quando a banda vivia seu auge, mas que faz parte da horda de admiradores que se espalha pelo Brasil. Falamos muito de Kurt Cobain nos últimos dias, com o aniversário de dez anos de sua morte, mas não podemos esquecer que Renato Russo é, também, um dos grandes heróis dos quais o rock hoje se ressente.

Mas por que? Qual é a razão para que o Legião se transformasse em mito? Quando surgiu, através de uma fita demo tocada na Fluminense FM, tratava-se de uma banda punk, mas o processo de amadurecimento dos músicos, aliado à pasteurização imposta pela indústria fonográfica, deu uma identidade própria a Legião. Ligados no bom rock feito no Reino Unido naquela década, o trio original (Renato mais Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá) e depois Renato Rocha, sorvia cada novidade feita na Velha Ilha. Não era à toa que Renato repetia, nos palcos, e à sua maneira, os gestos criados pelo suicida Ian Curtis, que ao morrer determinou o que aconteceria em boa parte dos anos 80, lá e aqui. Curtis, por sua vez, se inspirava em seus próprios ataques epiléticos. Mas Renato ia bem mais fundo. A partir de seis ídolos dos anos 70/80, conheceu os ídolos deles, das décadas anteriores, e quem enxergava no vocalista trejeitos de Jim Morrison ou Bob Dylan, por exemplo, não estava totalmente equivocado.

Mas por que? A pergunta ainda não foi respondida. Seriam a letras existenciais e críticas muitíssimo bem sacadas por Renato? Talvez, mas isso não é regra. Em diferentes períodos da história muita gente boa escreveu coisas do gênero, mas ficou no ostracismo ou só foi descoberto muito tempo depois de sua morte. Então, quem sabe, as apresentações catárticas da banda, assistida por milhares Brasil afora? Seria uma boa resposta, mas como explicar a adoração, hoje, de jovens que sequer viram a banda ao vivo, exceto em desgastadas fitas de vídeo? E ainda considerando quem viu a Legião nos palcos, mesmo somando todos os bilhetes vendidos nas turnês do grupo (que eram raras), não se chegaria ao contingente astronômico de fãs que existem hoje. Quem sabe, então, a morte precoce de Renato Russo? Afinal, outras mortes “inesperadas”, como as de Jimi Hendrix, John Lennon, e do já citado Cobain criaram grandes mitos dentro do rock. Mas isso não é regra. Cazuza, por exemplo, outro grande poeta da safra anos 80, homenageado por Renato Russo num show no dia de sua morte, e notadamente um dos grandes poetas da música brasileira, não se transformou num mito das proporções da Legião Urbana. Muito menos o Barão Vermelho.

Meus amigos, em verdade vos digo: não há respostas para estas perguntas. Porque o mito é o mito, por si só, e ponto final. Não tem um porquê. Nem mesmo os fidelíssimos fãs da banda, naquelas matérias insossas que volta e meia a Globo apresenta, têm as respostas. Eles gostam e pronto. Então, o máximo que podem fazer aqueles que, como eu, tentam pensar o rock, é olhar para trás e ver o legado deixado pela Legião. Vendo a discografia da banda, agora, pode-se dizer tudo da Legião, menos que não se tratava de uma banda mutante de disco para disco, sempre sobre a tutela de Renato Russo. Olhando hoje, de longe, por exemplo, para o disco “Dois”, de 86 (dá até vergonha saber que um artista tão criativo como Russo não tenha sabido escolher um título, né?), ele mais parece um desses “best of”, de tanto sucesso que tem. Tudo bem que era o auge do rock nacional, as rádios só tocavam isso, tinha o Plano Cruzado, todo mundo com dinheiro na mão. Mas me digam, que outro disco da época tem tantos hits? A mesma coisa acontece com o também ótimo “As Quatro Estações” (89), e o Plano Cruzado já tinha ido para o saco. A permanente tentativa de se re-inventar gerou discos díspares como o progressivo “V” (de novo sem nome, Renato?) e o genial “O Descobrimento do Brasil” (93), que rendeu o mais belo videoclipe já exibido na televisão brasileira, para “Perfeição”.

O agravamento da doença de Renato Russo até gerou, assim como no caso de Cazuza, álbuns fracos em seus últimos dias, mas nada que manche uma trajetória tão inovadora e arrebatadora, que é até covardia fazer comparações com o rock mainstream de hoje (sim, o Legião também tinha jabá pago para tocar nas rádios). E quem apostar as fichas nas apresentações ao vivo do grupo, há os póstumos “Como é Que Se Diz Eu Te Amo”, gravado no Metropolitan, então a maior e melhor casa de espetáculos da América Latina, no Rio, em 94, e Quatro Estações Ao Vivo, gravado em agosto de 90 para cerca de 100 mil pessoas (e não era festival) no Parque Antarctica, em São Paulo, que saiu agora. Os mais céticos irão reclamar que a gravadora só lança material requentado da Legião, para faturar em cima. Mas é assim mesmo, toda hora sai um disco novo de Hendrix e dos Beatles. Ademais, como exigir material inédito de que já partiu desta para uma melhor?

Sim, Renato Russo e a Legião Urbana fazem parte da nossa relação de heróis, que, como disse noutro dia, estão sempre sendo requentados para suprir a falta de novos ídolos. Isso porque têm a força intrínseca ao rock, que por si próprio já é arrebatador e tem a vocação para a vanguarda. E não tem essa de ame ou odeie, não. Mito é mito e ponto final.

Até a próxima, e long live rock’n'roll!!!

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