Rock é Rock Mesmo

A eterna vanguarda da música pesada

Se até num gênero discriminado como o heavy metal pode existir uma vanguarda, nem tudo está perdido. Veja como duas bandas, que são passado presente e futuro na música pesada, sintetizam este conceito. Publicado originalmente no Dynamite on line.

Desde que me interesso por rock e cultura pop vejo a expressão “à frente do seu tempo” em textos os mais variados, em publicações estrangeiras, artigos nacionais, jornais e revistas. Em geral, a expressão é aplicada para denominar artistas que, por um ou outro motivo foram verdadeiros “losers” em seu tempo, mas que sob o ponto de vista de um determinado jornalista/autor/pesquisador, ele foi, na verdade, um incompreendido que estava, como colocam, “à frente do seu tempo”. Muitos dirão que se trata de um clichê, mas como sou um fã incondicional do clichê, resolvi me apropriar deste para articular a coluna de hoje. Como saber se um artista está, de fato, “à frente de seu tempo”? Se a denominação é contemporânea ao artista em questão, por si só já perde credibilidade, pois não passa de especulação, muitas vezes a serviço da vaidade do jornalista/crítico, interessado em mostrar uma capacidade de enxergar mais longe que o reles ser humano. Talvez por isso pouca gente tenha se atido a verificar, com o passar do tempo, se um determinado artista que outrora era apontado como “à frente de seu tempo”, está hoje (ou ao menos esteve) nesta posição.

Vejamos, por exemplo, o caso do Jim Morrison. Me lembro sempre de ler a expressão “à frente de seu tempo” associada a ele, que, além de ser vocalista e líder do The Doors, era também aspirante a cineasta, poeta e emérito usuário de drogas, num tempo que essa atividade era intimamente ligada à experimentação e criação artística. Jim morreu em 71, e talvez por um bom tempo o trabalho que ele fez com ou sem os Doors realmente estivesse à frente da efusão do flower power e do movimento hippie. Mas hoje, se olhado com isenção, soa quase que datado. Respeito e tenho apreço pelo trabalho da banda, especialmente na fase inicial, mas hoje, repito, ele não está à frente de nada, já foi superado, artisticamente falando, há muito tempo.

Um outro caso, embora bem mais recente, entretanto, prova o contrário. Conversando, no intervalo de um dos shows do Ruído Festival, com o fotógrafo de estética rude/underground Maurício Porão, não sei porque cargas d’água o assunto foi parar no Helmet, sendo que ele me citou um disco deles como sendo um de seus preferidos, mas do qual, envergonhado, eu sequer me lembrava. Dias depois resolvi revirar na estante os discos que não ouvia há tempos, e me deparei com “Aftertaste”, do Helmet, o canto do cisne do quarteto, lançado em 97. Ao mesmo tempo, já vinha lendo por aí que o também nova-iorquino Prong tinha voltado à ativa, primeiro com um disco ao vivo (e aí já não gostei), mas agora com o lançamento de “Scorpio Rising”, o primeiro disco deles com músicas inéditas desde o excelente “Rude Awakening”, de 96. Coincidência ou sincronicidade do rock’n'roll (tema a ser desenvolvido numa coluna futura), minha amiga Luciane Dacal, na porta da Bunker, na última sexta, onde aconteceria o show do Chipset Zero, do nada, me revelou já ter baixado e ouvido todo o disco novo do Prong. Foi a gota d’água, o reencontro era inevitável. Primeiro, ouvindo os sensacionais “Aftertaste” (Helmet), provando que Porão tinha razão, e “Rude Awakening” (Prong), e, depois, a maioria das músicas (não consegui baixar todas) de “Scorpio Rising”.

As duas bandas, que tiveram um certo destaque no início dos anos 90, faziam parte do que a mídia chamava de “vanguarda do heavy metal”. De cara já gostei do termo, porque se até num gênero discriminado como o metal, mesmo depois de ter mudado a cara do rock várias vezes, desde o surgimento com o Black Sabbath, até o nu-metal contemporâneo e a diversidade européia, pode existir uma vanguarda, nem tudo estava perdido. Depois, se a tacanha e antolhada crônica heavy metal nacional nunca se relacionou bem com essas bandas (que não ganharam a denominação “metal”, em inglês, no final) isso já era, vamos e venhamos, um bom sinal. Essa vanguarda do metal antecipou, com seus riffs pesadíssimos, andamentos lentos no estilo “pára-continua” e repetitivos (também conhecido como bate-estacas) e temáticas surpreendentes para o metal, que não incluía seus dogmas, muito menos a estética épica de roupas de couro preto e cabelos longos, toda a onda do alternative metal e do nu-metal que desembocaria no que temos hoje, sobretudo na música americana, mas, também, em doses menos evidentes, no, repito, eclético metal europeu. Entretanto, toda essa vanguarda do metal (que além de Prong e Helmet incluía também nomes como Clutch, Primus e Ministry, entre outros) nunca teve o devido reconhecimento da mídia, sendo sempre ofuscada por nomes mais badalados e fakes como Faith No More e Red Hot, por exemplo. Seriam Helmet e Prong, então, bandas “à frente de seu tempo”? Depois de tudo que eu falei, isso já soa até como óbvio. Tanto que, na época, elas foram obscurecidas (num período fertilíssimo para o rock) pelo sucesso do grunge, do thrash metal que saía do gueto, pelo novo punk de Green Day e adjacências, e assim por diante. No Brasil, onde o Helmet chegou a tocar, em Santos (num festival bancado por um fabricante de tênis) e em São Paulo, essas bandas só tiveram destaque em publicações igualmente à frente de seu tempo, como a Dynamite, por exemplo, que chegou a dar capa ao Prong, meio a meio com o Slayer. A revista, honra seja feita, voltaria a repetir a dose, sendo a primeira a estampar bandas como Sonic Youth, Korn e Garbage, e recentemente os hoje badalados Strokes, Weezer e Hives, entre tantos outros.

Mas, voltando à questão inicial, elas continuam “à frente de seu tempo”, ou sucumbiram a este cruel efeito ao qual todos nós, sem exceção, estamos sujeitos? Uma audição apenas mais ou menos atenta em “Aftertaste” e “Meantime” (também do Helmet) mostra que a resposta é sim. Por incrível que pareça, passados cerca de sete anos do lançamento do primeiro, e doze(!) do segundo, o peso, o andamento, a marcação, os riffs, as músicas em si, enfim, continuam atualíssimos. Atualíssimos não, mas (agora sou eu quem diz) à frente de seu tempo. Mesmo com o avanço cavalar da tecnologia em tempos pós-informática, não existe hoje, enfatizo, músicas tão pesadas, nem nada que se pareça com o que temos nestes dois discos. O mesmo acontece com o sensacional “Rude Awakening”, mas no caso do Prong, o interessante é que, ouvindo as músicas do novo álbum, o já citado “Scorpio Rising”, o que se percebe é que a banda mudou muito pouco nos oito anos que separam os dois discos, mas que, ainda assim, soa inovadora, porque, repito, nada, nos dias de hoje, supera o trabalho de vanguarda do Prong. Uma vanguarda que, ao que tudo indica, parece não ter validade. Mais ainda, que tem o poder da renovação permanente, uma vez que nasceu com a vocação para a antecipação, e, por conseguinte, para o eterno. Assim como o rock.

Muito bem, meus amigos. Esta coluna, como sempre digo, não tem a pretensão de trazer as últimas novidades do rock. Para isso, há jornalistas mais antenados e competentes como o Lúcio Ribeiro. Mas me aproprio e trago para o rock uma tese da geografia determinística, segundo a qual “é preciso conhecer o passado para entender o presente e prever o seu futuro”. E, desafiando o próprio tempo, peço licença para apresentar os três (passado, presente e futuro) em duas únicas bandas: Helmet e Prong.

Até a próxima, e long live rock’n'roll!!!

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