Rock é Rock Mesmo

A sempre inacabada obra do Engenheiros do Hawaii

Comendo pelas beiradas, o Engenheiros do Hawaii jamais aceitou interferências no seu trabalho, como a gravação de disco de covers, acústico ou ao vivo fora de hora. E assim se transformou na maior banda média do Brasil. Publicado originalmente no Dynamite o line.

Afinal de contas, o que é o Engenheiros do Hawaii? Durante muitos anos a simples citação de um incauto admirador da banda de Humberto Gessinger numa roda de amigos já era motivo para que um outro participante da conversa disparasse uma série de acusações. Admitir publicamente o gosto ou a admiração por um grupo como o Engenheiros era um ato que sempre vinha seguido, necessariamente, de uma explicação. Algo como, “gosto, mas só até o disco tal”, “só da fase antiga”, “só até o dia em que fulano deixou a banda”, ou coisa parecida. Ninguém podia simplesmente dizer “gosto”, e pronto. Mesmo que todos, porventura, gostassem. Na verdade é assim até hoje. Mas por que cargas d’água isso acontece?

Na década de 80, prolífera para o rock nacional, o fenômeno rock, comum a vários outros países que saborearam o fim de uma ditadura militar, abriu espaço para que se desenvolvesse uma imprensa musical no Brasil. Pessoas que há muitos anos trabalhavam na mídia musical, em jornais ou publicações que não conseguiram se estabelecer no mercado, exerciam sua profissão na Revista Bizz, até hoje a mais importante publicação musical que o País já viu. Nasceu em 1985 na esteira do Rock In Rio, e foi para a vala em 2001, magrinha, por pura fala de visão do empresariado editorial, que achava pouco os 20 mil assinantes mais os outros 20 mil exemplares vendidos em banca. Influente no mercado, a publicação teve várias fases ao longo dos seus 16 anos, chegando a se chamar, mais de uma vez, Showbizz.

Numa delas, já numa segunda onda de bandas do rock nacional nos anos 80, a grande maioria dos colaboradores da Bizz era composta por gente que reivindicava uma “cena” (não há nome mais adequado) de bandas paulistanas, e que, assim, determinavam que o que estava fora desse grupo não era uma coisa a ser considerada. Boa parte desses colaboradores tocava nas mesmas bandas as quais eles idolatravam nas páginas da Bizz, e talvez grande parte dos leitores jamais soube disso. Ora, jornalista não pode ter banda, e quem tem banda não tem nada que escrever em jornais ou revistas, exceto como convidado para expressar um ponto de vista específico. Quem faz isso não pode ter o mínimo de credibilidade, tanto de um lado quanto de outro. E o leitor tem que saber disso. A Bizz daquele período criou, ignorando os mais básicos princípios jornalísticos, e em esfera nacional, a maior e pior das panelinhas de que se tem notícia.

E foi justamente essa panelinha que, por hobby, implicância, falta de assunto ou até desdém, vai saber, resolveu detonar cruel e insistentemente o trabalho do Engenheiros do Hawaii. A banda de Humberto Gessinger (e ele próprio) foi achincalhada ao limite do bom senso, fosse pelas letras cheias de aliterações (que ainda rendem elogios à obra do Ministro Gil), pelo sucesso radiofônico, pela escolha de covers certeiros, um em cada disco, quando isso ainda não era um artifício para alavancar carreiras em decadência, ou simplesmente por um corte de cabelo, que, eventualmente, não correspondia ao imaginário e aos penteados dos pseudo pós-punks bandeirantes.

Hoje, infelizmente, a Bizz não existe mais, e, ainda bem, esses facistas da palavra que dominaram a revista por um bom período… Bem, nem sei o que eles andam fazendo, talvez até tenham amadurecido (no pior dos sentidos) e estejam sentados numa poltrona vendo TV. Já o Engenheiros vai muito bem obrigado. A banda acaba de lançar “Dançando No Campo Minado”, o décimo primeiro disco de estúdio, todos gravados entre outros três ao vivo. Ao logo de todos esses anos, o Engenheiros curtiu seu maior sucesso no auge do nefasto Plano Collor, período em que o dinheiro de todo cidadão brasileiro que excedia algo em torno dos R$ 50 foi confiscado pelo governo. Ninguém tinha dinheiro para nada, mas “O Papa é Pop” vendia feito água até atingir a cifra (até modesta) de 350 mil cópias. Essa marca nunca mais foi atingida, mas os discos mais recentes chegaram a superar as 100 mil cópias, isso depois de muita água passar por baixo da ponte do rock nacional. Nada mal, não?

Em toda a sua história, provavelmente o Engenheiros jamais tenha atingido a popularidade de outras bandas, o que, de certa forma, manteve uma coerência como o tal conceito “longe demais das capitais”, título do álbum de estréia. Mas jamais a banda se sujeitou a esquemas que interferissem em seu trabalho, como a gravação de disco de covers (Barão Vermelho, Ira!, Titãs, Legião Urbana), do tipo acústico (Paralamas, Kid Abelha, Titãs, Capital Inicial), ao vivo fora de hora (Ultraje, Titãs, Kid Abelha, Ira!), ou partiu para estratégias de carreira solo, muito embora Humberto Gessinger tenha lançado um disco sob o nome Humberto Gessinger Trio (um admitido erro) e seja ele o dono da banda e único remanescente a formação clássica (Augusto Licks e Carlos Maltz eram os outros dois). “Pô, deixa os caras fazerem que eles sabem o que eles fazem melhor”, é o que dizem os gênios das gravadoras, segundo o próprio Gessinger, em uma entrevista a mim concedida na semana passada.

Recentemente, o Engenheiros iniciou uma nova fase, com nova formação, e se percebe um certo ar de renovação, com Humberto voltando a acertar nas letras, usando guitarras pesadas (tocadas de novo por ele) e uma roupagem nova, mas ao mesmo tempo remetente à própria carreira da banda, como se a cobra voltasse a morder o próprio rabo, lembrança da capa do disco “Várias Variáveis”, de 1991. No bom e abrangente site da banda (www.enghaw.com.br), a agenda mostra um bom número de shows marcados pelo país, e mostra outros tantos realizados ininterruptamente o longo de todos esses anos, apesar de não se ver nenhuma resenha desses shows em nenhuma publicação dita especializada, exceto quando a banda participa de um festival como o Rock In Rio. Com pouca exposição nos rádios e na TV, ou utilizando quaisquer artifícios (nem mesmo a assessoria de imprensa da gravadora gasta muito tempo com a banda) o novo disco, seqüência de “Surfando Karmas e DNA”, já vendeu 45 mil cópias, em um ou dois meses.

Perguntado sobre a perseguição (não há outro termo) da Bizz nos anos 80, Humberto disse não querer ser arrogante, mas para ele crítica e artista são lados que não dialogam: um compõe as músicas que tem que compor, e outro escreve o que tem que escrever. Também disse não adotar a postura do “fale mal mas fale de mim”, embora tenha admitido que isso aconteça, e, olhando para trás, afirmou que hoje a mídia é outra, porque tem os veículos menores e a Internet, que, de certa forma, impedem o domínio de uma opinião dita única, como acontecia com a Bizz daquela segunda metade dos anos 80. E isso tudo de cara limpa e sem a menor mágoa. Para ele, tudo fez parte de um processo histórico.

Aqui cabe um parêntese, já que o caso Bizz/Engenheiros, no fim das contas, é exemplar, para podermos ficar atentos hoje. Porquê, coincidência ou não, há uma corrente de jornalistas (renomados até) que pegam obsessivamente no pé daquilo que eles chamam de “rock gaúcho”, como se bandas como Tequila Baby, Wander Wildner, Bidê ou Balde, Krisiun, Comunidade Nin Jitsu e Acústicos e Valvulados, só para citar algumas, fizessem o mesmo tipo de som, por serem de um mesmo estado brasileiro. Parece até uma coisa cíclica, de a capital do poder (financeiro) querer ser também a capital da cultura e do rock, nem que seja à força ou à custa de bravatas semelhantes às que tentaram, em vão, sepultar o Engenheiros do Hawaii no passado. Não quero sair em defesa dessa ou daquela banda, mas todas merecem ser ouvidas e certamente atingirão seus respectivos públicos, quer queira a crônica bandeirante ou não. Portanto, não vamos cair de novo nesse truque sujo.

Voltando ao Engenheiros, a maior banda média do Brasil, ainda não tinha entrado no mérito da qualidade da música do grupo, mas vou fazê-lo abreviadamente agora. No passado tive até certas dúvidas, mas agora, olhando de longe, não é exagero afirmar que se trata de uma obra irretocável, e que tem a síntese, não numa fase ou disco, mas numa única e profética música: “O Papa é Pop”. Gravada no início dos anos 90, querendo ou não, ela previu que nos anos seguintes, até hoje, a música e o rock nacional sucumbiriam ao pop no pior dos sentidos que o termo possa traduzir: o rock brasileiro virou algo condenado ao underground para sempre e o resto é pop e não poupa ninguém. Escapando a tudo e a todos, só mesmo a sempre inacabada obra dos Engenheiros.

Até a próxima, e long live rock’n'roll!!!

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