Fase 4
Sisters Of Mercy consolida formação que lhe escapa das próprias origens, mas repertório único e atemporal garante apresentação convincente. Fotos: Daniel Croce.
Contudo, antes, é preciso ter em mente algumas ressalvas. O Rio de 2019 não é a Leeds de 1981, tampouco o Vivo Rio é o Royal Albert Hall da Londres pós punk de 1985. A fumaça que aqui vagueia não é o fog que gela por lá. A emblemática figura de um Andrew Eldritch é de uma época que não existe mais, e, de fato, sob indumentária decepcionantemente comum, hoje vive nas sombras de feixes de luz como numa metáfora/caricatura de si próprio. Os que o circundam, também, são vaga lembrança – ou nem isso - daqueles que, de tão importantes, seguiram caminhos de notável relevância. E até a incrível máquina de fazer batidas e grooves, única bateria eletrônica acústica possível naqueles tempos, já tem um operador – ou cuidador, como queiram - para fazê-la seguir em frente.
Mesmo assim, pela força de um repertório que é muito mais do que carimbado como clássico – já que nenhum disco foi lançado nos últimos 29 anos -, mas específico e determinante de uma época, o show, o possível nesses tempos tão estranhos, é ótimo. Porque nunca é demais ouvir a voz de barítono de Eldritch, que continua saindo dos quintos doa infernos das suas vísceras como se fosse tudo o mesmo lugar, envolto em uma alma atormentada como só se tinha na ressaca do punk. Porque músicas como a definitiva “First And Last And Always”, já no título, espécie de “no future” do pós punk; “No Time to Cry”, que aposta na veia dançante e resultou na alcunha de “discoteca para vampiros”; e a simbólica “Alice” e sua introdução de guitarra minimalistamente preciosa, são, todas elas, vedetes de uma banda que jamais existiu outra igual.Também é preciso realçar que essa formação do Sisters, sem baixista e com dois guitarristas, subtrai a essência da banda. Porque eles - Ben Christo, há mais de uma década no time, e o novato Dylan Smith – tocam com impressionante frouxidão. Somados, não dão metade de um Wayne Hussey, que deixou o grupo logo de cara para brilhar com o The Mission, nem assustam um Tim Bricheno, aquele mesmo do All About Eve, que fez parte da banda no início dos anos 1990. Além da voz e da figura de Andrew Eldritch, marca a música do Sisters as ótimas guitarras minimalistas, sempre com o baixo marcante de Craig Adams (Patricia Morrison e Tony James, do Sigue Sigue Sputnik, foram bem depois) à frente. Daí a ausência de um baixista fazer toda e diferença, ainda que Ravey Davey, o tal operador do Doktor Avalanche, se esforce um bocado para enfiar grooves pré-gravados durante o show.
Assim, uma música como a “Lucretia My Reflection”, sem baixo, é completamente diferente, ainda que a empolgação do público tenha vindo como compensação. Em relação ao show de 2016 (relembre), no mesmo local e já sob esse formato, há uma ênfase maior na “Fase 3”, por assim dizer, do álbum “Vision Thing” (1990), tocado quase na íntegra (excluir logo “When You Don’t See Me”?), em detrimento da “Fase 1”, do “First And Last And Always” (1985), o LP de estreia, para trás, que tem omitidas pérolas como “Amphetamine Logic”, “Valetine” e “Body Electric”, brilhos naquela ocasião. Da “Fase 2”, com a equação pós punk + progressivo + trevas do disco “Floodland (1987), seguem muito bem a duplinha “Dominion/Mother Russia” e “This Corrosion”, as duas muitíssimo bem apreciadas pelo público. Com duas músicas a menos nesse show, contudo, é possível rabiscar um set list só com as ausências, ainda mais se consideramos os maravilhosos EPs, singles e afins, dos tempos pré-primeiro álbum.O que o show consolida, na verdade, é uma “Fase 4”, com esse formato – duas guitarras, sem baixo e com operador de bateria eletrônica, repita-se – que tem como pequena prova quatro músicas ditas novas. Novíssima mesmo é uma instrumental que, apesar de atraente, aguarda-se a colocação de vocais, porque não existe Sisters sem a voz de Andrew Eldritch. “Show Me”, mais lenta e soturna, cresce no título/verso/refrão, e a acelerada “Better Reptile” é outra já tocada nas últimas turnês. Já “Crash And Burn”, com guitarras pesadas, nem é tão nova assim, já que vem sendo mostrada regularmente desde 2006; há quem conheça a letra no meio da plateia. A expectativa, jamais correspondida, é que esse apanhado de músicas tocadas de 1990 para cá um dia virem um álbum que marque e fase atual da banda, material que só se vê nos shows e no submundo da pirataria virtual. Mais uma prova de que nunca existirá uma banda como o Sisters Of Mercy.
Set list completo:1- More
2- Ribbons
3- Crash and Burn
4- Doctor Jeep/Detonation Boulevard
5- No Time to Cry
6- Alice
7- Show Me
8- Dominion/Mother Russia
9- Marian
10- Better Reptile
11- First and Last and Always
12- Sem título (instrumental)
13- Something Fast
14- I Was Wrong
15- Flood II
Bis
16- Lucretia My Reflection
17- Vision Thing
18- Temple of Love
19- This Corrosion
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