O Homem Baile

Fonte inesgotável

Legião Urbana segue rejuvenescendo repertório clássico do rock nacional que se recusa a ficar preso aos anos 80. Foto: Fernando Schlaepfer/Divulgação.

dadobonfa19A introdução da música é tão inspiradora que, antes mesmo de a letra começar já faz a plateia, em uníssono, escancarar o desejo de por pra longe o presidente terraplanista com o coro que virou hit de norte a sul do País. No meio, embalado pelo sensacional riff que deságua no refrão, o vocalista rasga uma camiseta branca manchada de sangue, aumentando ainda mais a empolgação de uma turba que não para de cantar em quase duas horas de um show fadado a rememorações sem fim. A música, um dos hinos nacionais brasileiros, questiona diretamente onde vivemos, e a banda é o legado atuante da Legião Urbana, tocando a íntegra dos álbuns “Dois” e “Que Pais é Este?” em um Vivo Rio lotado como pouco se vê, nesta sexta (25/10), no Rio.

Uma íntegra, contudo, com as faixas de cada álbum embaralhadas umas nas outras de modo a criar interessantes – e não ao acaso – sequências que os discos não contêm. Como o retrato citado ali em cima, que tem, enfileiradas “Faroeste Caboclo”, que a turma adora provar que sabe a letra todinha, “Que País é Este”, ainda com aquela incômoda resposta no playboyzada style do Capital Inicial, e a belíssima “Angra dos Reis”, reforçada pelos teclados de Rodrigo Tavares. Ou um sensacional bloco pauleira com a rascante “Metrópole”, “Química”, quase um punk rock raiz, cantada em alta velocidade por André Frateschi, e a enigmática “Plantas Embaixo do Aquário”, com o verso “Não deixe a guerra começar” convertido em libelo contra as armas nesses tempos tão estranhos.

Tempos em que outras músicas da Legião se encaixam como fonte para posicionamentos/protestos ainda necessários. Como “Conexão Amazônica”, que o guitarrista “Dado Villa-Lobos” relembra ter sido censurada já em 1987, bem depois do fim da ditadura militar, e de como é importante que esses tempos sombrios não voltem. Ou “Mais do Mesmo”, na qual Fratesqui cita a morte de índios (e ainda teve “Índios”) e o descaso com questões ambientais. Ou ainda “Fábrica” e o direito ao trabalho honesto cada vez mais negado justamente pelo congresso onde há “sujeira pra todo lado”, um dos versos de “Que País é Este”. Ou no deboche que escancara o modus operandi de um cotidiano fatal de “Metrópole”. E tudo isso escrito há 30 anos ou mais pelo genial Renato Russo.

Daí o óbvio, mas não menos necessário pedido de “um salve gigante” de Fratesqui para Renato – no que é correspondido de imediato - entre duas belas versões, para “Música Urbana 2” e “Eduardo e Mônica”. A primeira, curiosamente sem nenhum integrante da formação clássica, tem André Fratesqui, Tavares e o guitarrista Lucas Vasconcelos em versão totalmente intimista, e, a segunda, quase toda sem bateria, é cantada do Marcelo Bonfá, que, a bem da verdade, como vocalista é ótimo baterista. As duas têm um up grade de Fratesqui com a inclusão de harmônica, o que ajuda a reforçar que esse projeto, que nem pode usar o nome da banda, graças a desavenças com os herdeiros de Renato, é muito menos cover e mais uma reinterpretação do legado da Legião propriamente dito.

Ideia escancarada pelo modo de tocar de Dado, nunca antes tão arrojado como guitarrista como agora, e desde o início, com músicas nem tão pungentes assim (a belíssima “Quase Sem Querer” justifica ao apelido de “banda de sarau”), incrementando o valor instrumental, que muitas vezes lhe é negado, mas que ostenta, sim, com muita propriedade. Músicas como “Eu Sei”, com final turbinado, a difícil “Andrea Doria”, um “não hit” clássico, e o desfecho com a emblemática “Tempo Perdido”, umas das que ele canta, têm roupagem remodelada graças ao guitarrista. Completa a formação o baixista Mauro Berna, discreto até, mas que, como diretor musical do show, é responsável por essa cara diferente no repertório, sem, contudo, perder o apoio original que o torna clássico.

O termo “não hit”, entretanto, que se aplica também para “Acrilic On Canvas” e “Mais do Mesmo”, entre outras, parece não fazer sentido com a intensa cantoria por parte do público, curiosamente de várias idades, em meio a gritos de “Uh! É Legião!” entre as músicas. Esgotado o repertório dos dois discos, o bis traz praticamente um número de cada um dos demais, incluindo “Será”, remanescente da turnê do disco de estreia (relembre aqui e aqui) - e o público vem abaixo -; o desfecho com outro hino do Brasil, a messiânica “Perfeição”, de interação emocionante; e “Há Tempos”, representante de “Quatro Estações”, álbum do qual é omitido sucessos como “Pais e Filhos”, por exemplo. Ou seja, a turnê com a íntegra desse disco, que completa 30 anos de lançado exatamente hoje (26/10), possivelmente já está engatilhada. Quer saber? Já tá é atrasada.

Set list completo:

1- Daniel na Cova Dos Leões
2- Quase Sem Querer
3- Eu Sei
4- Índios
5- Acrilic on Canvas
6- Tédio (com um T bem grande pra você)
7- Mais Do Mesmo
8- Metrópole
9- Química
10- Plantas Embaixo do Aquário
11- Depois Do Começo
12- Conexão Amazônica
13- Música Urbana 2
14- Eduardo e Mônica
15- Faroeste Caboclo
16- Que País é Este
17- Angra dos Reis
18- Andrea Doria
19- Fábrica
20- Tempo Perdido
Bis
21- Vento No Litoral
22- Giz
23- Há Tempos
24- Será
25- Perfeição

Tags desse texto:

Comentário

Seja o primeiro a comentar!

Deixe o seu comentário

Seu email não será divulgado