Irretocável
Incrível entrosamento, boa forma e virtuose do bem dão o tom no show em que o Living Colour toca a íntegra do álbum de estreia. Fotos: Luciano Oliveira.
Para quem esqueceu das virtudes do quarteto, o guitarrista Vernon Reid refresca a memória logo de cara em “Come On”, a segunda da noite, em que desanda a solar como se a música fosse o ponto alto do show. E com um ligeiro duelo de guitarra versus vocal com Corey Glover, no melhor estilo Ian Gillan x Ritchie Blackmore. Como se vê, o show começa de maneira incomum. Primeiro, “Preachin’ Blues”, de Robert Johnson, quase acústico, como se permissão fosse pedida ao homem que fez o mais famoso pacto com o diabo da história. Depois, “Come On” e, em terceiro, eles mexem no vespeiro com “Who Shot Ya?, de Notorious BIG, com Glover muito bem nos vocais do gênero. A música é dedicada a Evaldo dos Santos Rosa, morto no atentado de 80 tiros pelo exército, em abril, e a Marielle Franco, a vereadora carioca executada por milicianos no ano passado; e no final ainda teve a massa mandando o presidente terraplanista tomar vocês sabem onde.
“Trinta anos! Trinta anos!”, diz Corey Glover, recuperando o look coloridaço de outrora, no lugar do suéter de vovô dos últimos tempos, dando a senha, e só então se faz aquilo que todos esperam, de modo que dúvidas se dissipam nota após nota. Porque nem sempre todas as músicas de um álbum funcionam ao vivo, muito menos se tocadas na ordem em que foram lançadas, em um LP, há mais de 30 anos. Mas é aí que, subtraídos os hits que fazem parte dos show até hoje, aparecem pérolas esquecidas como “I Want to Know”, um funk rock com o baixo grooveado de Doug Wimbish e riffs de guitarra muitíssimos bem casados. Assim como, mais adiante, “Funny Vibe”, sua prima próxima, que acumula um meticuloso trabalho do batera Will Calhoun. Em “Which Way to America?”, no desfecho do material do disco, uma pilha instrumental surge no final da música, incluindo vocalizações de em saudável Glover, em extraordinária peça de virtuose individual convertida em coletiva, à custa de um entrosamento deveras peculiar, unindo vertentes da música – virtuose e bom gosto – quase sempre imiscíveis.A plateia é na maior parte do tempo contemplativa, o que leva tanto Glover quanto Reid a instigar maior participação. O que só acontece de fato nos hits, como “Cult Of Personality”, com versos em perguntas e respostas, incluindo uma exibição de contrabaixo de Wimbish, ou na pergunta óbvia de “What’s Your Favorite Color? (Theme Song)”. Em “Glamour Boys”, realça a pegada latina e também de como a música desse quarteto fantástico é multi-influenciada de tudo o que é lado, e Corey Glover solta o gogó sem medo de rouquidão em “Open Letter (To a Landlord)”, que o público abraça na parte final, como se alternativa houvesse. A vibe da noite só é quebrada na hora do solo de Calhoun, não pelo número de bateria em si, mas pela inclusão de instrumentos, por assim dizer, experimentais demais para a ocasião.
Pelo tempo de show relativamente curto – cerca de 1h45 – fica a dúvida se, ainda joviais, eles não poderiam tocar, na sequência, a íntegra de “Time’s Up”, o sucessor de “Vivid”, de 1990. Ou bate a saudade do que não vivemos para ver como funcionariam ao vivo outras músicas de “Shade”, o disco mais recente, de 2017, que de certo modo recupera o Living Colour de raiz, além das três primeiras, sendo duas covers. Coisas que não fazem sentido na reta final da noite, com “Love Rears Its Ugly Head”, que curiosamente o público adora, e no arraso da dobradinha “Elvis is Dead” e suas nuances, incluindo citações a música negra americana ancestral e “Type”, que nem sempre é tocada. Mas entra em uma versão alongada e com Glover realçando “as crianças do concreto e do aço” de modo contundente. Um bônus a mais em uma daquelas noites para se anotar no caderninho.O Circo Voador não encheu tão rápido quanto os horários anunciados prometiam, mas quem chegou mais cedo viu um bom show do Seu Roque. O grupo vai fundo em um classic rock, com claras referências a ícones associados ao gênero, o que acarreta, de certo modo, algum decréscimo criativo, algo a se depurar nas próximas composições. As melhores músicas do show são “Reflexo”, com uma baixo galopante e que arranca aplausos no final; “Visceral”, faixa-título do segundo álbum, de tom épico/profético, em um ótimo desfecho; e ainda “Amor Bandido”, com a participação de Gus Monsanto (Adagio), música inclusive dedicada ao grande André Matos, falecido no último sábado.
Set list completo Living Colour:1- Preachin’ Blues
2- Come On
3- Who Shot Ya?
4- Cult of Personality
5- I Want to Know
6- Middle Man
7- Desperate People
8- Open Letter (To a Landlord)
9- Funny Vibe
10- Memories Can’t Wait
11- Broken Hearts
12- Glamour Boys
13- What’s Your Favorite Color? (Theme Song)
14- Which Way to America?
15- Solo de bateria
16- Love Rears Its Ugly Head
17- Elvis is Dead
18- Type
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