O Homem Baile

Precisão dos infernos

Ao debutar no Rio, Cradle Of Filth impressiona pela destreza com que executa a íntegra de álbum marcante para o black metal. Fotos: Daniel Croce.

Figura central no Cradle Of Filth, Dani Filth mostra excelente capacidade de variação vocal

Figura central no Cradle Of Filth, Dani Filth mostra excelente capacidade de variação vocal

Já é a parte final do show quando, súbito, o início de uma das músicas pode ser anotado como o mais reconhecido por um público que não tem nada de bobo: está ali porque conhece o trabalho do artista de cabo a rabo. Canção que, a despeito de ser uma noite das trevas dos quintos dos infernos, vem com inequívoco respaldo pop no que põe esta mesma plateia, contemplativa na maior parte do tempo, para esboçar até uma dança, em pleno show de black metal. Ou, por outra, em uma das maiores bandas de black metal de que se tem notícia. É o Cradle Of Filth tocando “Nymphetamine (Fix)”, um de seus maiores sucessos, inclusive extramuros, em show de estreia da banda no Rio, nesta sexta, para um Circo Voador muitíssimo bem frequentado.

O prato principal, contudo, nem é esse. Trata-se da turnê “Lustmord and Tourgasm”, que oferece a íntegra das músicas do clássico “Cruelty and the Beast”, tocadas na ordem do álbum, lançado há 21 anos, época em que o grupo fazia os queixos caírem no entorno da música pesada em todo o mundo. De lá para cá muita coisa mudou, sendo o vocalista Dani Filth o único remanescente entre os músicos que gravaram esse disco e também da formação original do Cradle Of Filth. É, assim, peça central no show e não só pelo fator “antiguidade é posto”, mas pela impressionante capacidade de variação vocal que mantém em ótima condição. Do nada, e em um só música, ele vai do seu inigualável tom esganiçado ao gutural, afastando ou aproximando o microfone da boca, e busca as notas mais altas com nível impressionante que parece incluir uma entrega quase corporal, física mesmo; não são ao toa os pulinhos e a inquietude nas mãos do trevoso pequerrucho.

Os guitarristas Richard Shaw e Marek Smerda tocam juntos em coreografia na beirada do palco

Os guitarristas Richard Shaw e Marek Smerda tocam juntos em coreografia na beirada do palco

Dani encontra na tecladista Lindsay Schoolcraft o contraponto lírico ideal, não só nos vários papéis do conceitual “Cruelty and the Beast”, mas na segunda parte da noite, em que aprecem músicas de fases diversas em que o grupo flerta com outras tendências do metal, incluindo gótico, erudito e adjacências. “Saffron’s Curse”, prima irmã de “Nymohetamine (Fix)”, é outro realce cativante da noite. É como se a dupla fizesse os papeis principais de um ópera from hell, sobre a música pesada e extrema executada com precisão “de click” pelos outros quatro integrantes, que esbanjam entrosamento musical e em coreografias indispensáveis ao imagináio do metal, extremo ou não. Em trechos de “Bathory Aria”, quase uma peça progressiva dentro da tal ópera, os guitarristas Richard Shaw e Marek Smerda e o baixista Daniel Firth se posicionam na borda do palco, com Dani no alto de um praticável, atrás, em cena marcante na noite. O carrancudo Shaw ainda chama a atenção em giros sem parar no qual o figurino traça um círculo em torno dele próprio, chamando a atenção do público.

Na primeira parte não tem boa noite nem “Rio, I love you”, o couro come sem dó com o grupo tocando como um reloginho de engrenagem bem lubrificada. Lá nos fundos, o baterista Marthus, cercado por um biombo de vidro, parece ter vida própria, e nem as inexplicáveis falhas no PA – foram seis ou sete picos de silêncio – perturbam o andamento das músicas; parece que, no retorno para os músicos, nada aconteceu de errado. Com as músicas coladas umas nas outras, fornecendo ainda mais unidade ao material conceitual, em que pese as instrumentais pré-gravadas, o resultado embasbaca o público, na maior parte do tempo no modo estarrecido, e, na menor, no de agitação. É assim ao final de “Cruelty Brought Thee Orchids”, por exemplo, composição das boas, que de certo modo acolhe, em uma faixa só, quase tudo que marca o álbum: duelos, urros e variações vocais, narrações, mudanças de andamento e tudo – de novo – com incrível precisão técnica.

Dani ao lado de Lindsay Schoolcraft, o contraponto lírico ideal para o conceito de 'Cruelty and the Beast'

Dani ao lado de Lindsay Schoolcraft, o contraponto lírico ideal para o conceito de 'Cruelty and the Beast'

A produção de palco é boa, mas, também, limitada. Não há o fog de outras épocas, nem a maquiagem pesada característica da banda e do gênero, exceto por Dani Filth, e é tudo mais leve, sobrando – vale repetir – as caras de expressões fechadas, mais emblematicamente por parte de Richard Shaw, e a doçura contrastante da coroada Lindsay, que até recebe uma rosa do público. Em “Twisted Nais Of Faith” é Marthus que mostra o quanto é especial para a banda, e as coreografias proliferam sem prejuízo das guitarras sombrias de conexão gótica gritando na beirada do palco. Marek é quem detém os solos mais relevantes, muito embora o solo em si não é o melhor que a banda – o gênero e o álbum, enfim – têm a oferecer; é nas texturas e arranjos intrincados que brilham as guitarras. O desfecho do álbum de cabo a rabo tem um belo duelo melódico/épico de guitarra, em “Lustmord and Wargasm”, e a segunda parte ainda inclui “Heartbreak and Seance”, com vocais de apoio gravados, e outra queridinha do público, “Her Ghost in the Fog”, no arremate final de uma noite seguramente peculiar.

Set list completo:

1- Once Upon Atrocity (gravação)
2- Thirteen Autumns and a Widow
3- Cruelty Brought Thee Orchids
4- Beneath the Howling Stars
5- Venus in Fear (gravação)
6- Desire in Violent Overture
7- The Twisted Nails of Faith
8- Bathory Aria
Benighted Like Usher
A Murder of Ravens in Fugue
Eyes That Witnessed Madness
9- Portrait of the Dead Countess (gravação)
10- Lustmord and Wargasm (The Lick of Carnivorous Winds)
11- Malice Through the Looking Glass
12- Heartbreak and Seance
13- Nymphetamine (Fix)
14- Saffron’s Curse
15- Her Ghost in the Fog

Banda em ação: Marek Smerda, o baixista Daniel Firth, Dani Filth, Richard Shaw e Lindsay Schoolcraft

Banda em ação: Marek Smerda, o baixista Daniel Firth, Dani Filth, Richard Shaw e Lindsay Schoolcraft

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