O Homem Baile

Não é miragem

Raimundos revive sua melhor fase com formação clássica possível e íntegra do álbum de estreia no Circo Voador. Fotos: Frederico Cruz.

O guitarrista Digão, em ótima fase, com enfase na parte vocal, no show do primeiro disco do Raimundos

O guitarrista Digão, em ótima fase, com enfase na parte vocal, no show do primeiro disco Raimundos

Uma bateria de cada lado do palco entrega que não se trata de um show comum. Uma delas será ocupada por um filho pródigo que está de volta depois de um tempão e não se sabe por quanto tempo ficará. Na outra, aquele que ocupa o posto com a destreza que lhe é peculiar há mais de uma década e, juntos, eles parecem se divertir pra valer nessa horinha e meia que passa em um sopro de Niemayer. Na frente deles, o substituto do vocalista que a plateia defenestra, dessa vez atuando na maior parte do tempo como cantor mesmo, embora seja guitarrista dos bons. Não é miragem, não é sonho, não é regressão. É o Raimundos com a formação clássica possível no Circo Voador lotado tocando a íntegra do álbum de estreia, neste sábado, 13/4.

Não que seja fácil substituir Rodolfo para fazer as músicas de “Raimundos”, o disco, lançado em 1994 e que, portanto, completa 25 anos esse ano. E talvez por isso mesmo Digão assume o microfone como jamais havia feito, o que nos leva a pensar que Rodolfo, o segundo nome mais xingado da noite (o primeiro você sabe qual é), jamais teve um substituto à altura, ao menos até esta noite de gala que só poderia mesmo acontecer no Circo Voador. Porque quase o tempo todo sem guitarra, Digão vai muito bem reproduzindo fielmente as pedradas do disco, incluindo temas difíceis como “Nega Jurema” “Marujo” e “Carro Forte”, nos quais mais do que voz, é preciso fôlego e discernimento vocal para se fazer entender – e são músicas que todo mundo ali no meio daquele povaréu conhece. Seguro, Digão quase não usa o artifício de outras épocas, o de colocar o público para cantar no lugar dele o tempo todo; e isso é ótimo.

Na bateria, ainda sozinho, está Frederico Castro, ou Fred Raimundo, reverenciado pelo público como poucas vezes se vê no mundo do rock, em se tratando de um baterista. Ele toca o show inteiro, e em “Selim”, que encerra o álbum de estreia, tem a companhia de Caio, na batera ao lado, até o final da noite. Ambos se divertem a valer e brincam até quando um espera pelo outro fazer algo – uma batida, uma virada - para fazer também. A formação clássica possível, então, é completada por Canisso, figuraça nato, no baixo, que no final do show daria o prometido salto mortal em um mosh sobre o público, e o eficiente guitarrista Marquin, que garante a liberdade de Digão como cantor e também duela como o próprio Digão em alguns solos. As músicas são tocadas emendadas umas nas outras em impressionante velocidade, e o público, além de se estapear em rodas de pogo, canta cada faixa, até mesmo as menos conhecidas, que talvez não fossem tocadas nem na época em que o disco foi lançado.

O modo como as músicas são tocadas depõe contra a máxima de que Raimundos = Ramones + forró, e revela o componente metálico from hell da banda – “Rapante” parece Slayer -, além de outras referências como a guitarra Suicidal Tendencies indelével de Digão. Em “Be a Bá”, ele, Marquin e Canisso na beirada do palco é uma das coisas mais lindas de ser ver nessa noite. Mas têm aquelas que agradam até aos fãs por correspondência, como “Puteiro em João Pessoa”, em sensacional abertura, “Cajueiro/Rio das Pedras”, com um errinho antes pra animar, e até a terrível “Selim”, emblema de uma banda que é patrimônio do rock nacional, mas que, em tempos tão raivosos e obtusos como os nossos, seria inviável.

Juntos outra vez: o baterista da formação clássica, Fred, e o baixista e figuraça de plantão Canisso

Juntos outra vez: o baterista da formação clássica, Fred, e o baixista e figuraça de plantão Canisso

Em meio a tanta alegria, a tristeza de ver no que se transformou, lamentavelmente o mosh pit, a julgar por esse show, o que leva a identificar uma série de tipos de emburrecidos contemporâneos: 1) O que sobe no palco para a abraçar o músico enquanto ele toca e ser fotografado por amigos na plateia; 2) O que sobe para fazer selfie do lado do músico, enquanto ele toca; 3) O que sobe no palco e fica lá em espetáculo ego-exibicionista; 4) O que sobe no palco e quer cantar a música junto com o músico, mesmo sem saber como fazê-lo; 5) O que sobe no palco, vai até a bateria e, na volta, pede para o vocalista sair da frente para saltar sobre a plateia; e 6) Aquele que vai até ao lado da bateria e quer entregar uma camiseta usada e suada ao baterista enquanto ele toca. Registre-se que os músicos – que de bobos não têm nada para comprar briga com fã – mantém a calma e participam dessa interação bizarra nesses tempos tão estranhos.

Nada que estrague a festa por completo - e ainda teve Ratos de Porão antes (veja como foi) -, e a segunda metade vem cheia de sucessos e até com música já sem Rodolfo nos vocais, caso da boa, pesada e com ótimo riff “Mas Vó”, do pouco observado álbum “Kavookavala”, de 2002. Tem “Tora Tora”, com guitarras descomunais, cuja reação da plateia é avaliada por Digão como a melhor do Brasil; o esplendor riffônico de “Eu Quero Ver o Oco”, que não deixa nem os seguranças do Circo incólumes; “A Mais Pedida”, com fã cantando a parte dos vocais femininos da versão original em pleno palco; “Mulher de Fases”, precedida por um reggaezinho sarapa; e (ufa!) a deliciosamente sonsa “I Saw You Saying (That You Say That You Saw)”. Se puder, não perca essa turnê. Você não vai ver nada mais próximo do Raimundos clássico do que isso.

Set list completo:

1- Puteiro em João Pessoa
2- Palhas do Coqueiro
3- MMs
4- Minha Cunhada
5- Rapante
6- Carro Forte
7- Nega Jurema
8- Deixei de Fumar/Cana Caiana
9- Cajueiro/Rio das Pedras
10- Be a Bá
11- Bicharada
12- Marujo
13- Cintura Fina
14- Selim
15- Tora Tora
16- Eu Quero Ver o Oco
17- Esporrei na Manivela
18- Reggae do Manero
19- A Mais Pedida
20- Mulher de fases
21- O Pão da Minha Prima
22- Bonita
23- Papeau Nuky Doe
24- I Saw You Saying (That You Say That You Saw)
25- Aquela
26- Mas Vó
27- Me Lambe
28- Tá Querendo Desquitar (Ela Tá Dando)

Coisa linda: o eficiente guitarrista Marquin e Digão lado a lado duelando na beirada do palco

Coisa linda: o eficiente guitarrista Marquin e Digão lado a lado duelando na beirada do palco

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