O Homem Baile

Ousada homenagem

Turnê de época do U2 encanta público heterogêneo na estreia da temporada de quatro shows em São Paulo. Fotos: Stephan Solon/Move Concerts.

O guitarrista The Edge, o vocalista Bono Vox e o baterista Larry Mullen Jr., no centro do palco

O guitarrista The Edge, o vocalista Bono Vox e o baterista Larry Mullen Jr., no centro do palco

Se a ideia é transportar o público para a atmosfera que o U2 encontrou nos Estados Unidos no período que antecedeu as gravações do álbum “The Joshua Tree”, a tarefa foi completada com sucesso. Porque o palco que a banda bolou e trouxe para o Brasil nesta quinta (19/10), no Estádio do Morumbi, em São Paulo, é tudo, menos um palco. Sem laterais fundo ou cobertura, a estrutura é simplesmente um dos maiores telões do mundo (1600 m2) chapado na cara da plateia, com o piso que contém uma passarela de considerável comprimento que leva a banda para o meio do público. E sem praticamente nada espalhado pelo caminho, justamente para que se lembre da imensidão do deserto de Mojave, nos cafundós da Califórnia, onde a tal arvore de Josué tem seu habitat natural, graças a incríveis projeções de extraordinária resolução. É o U2 em sua “versão simples”, dessa vez em uma turnê de época, que terá outras três apresentações nesse mesmo Morumbi.

O show é dividido em três blocos centrais, com a íntegra das 15 músicas de “The Joshua Tree” tocadas na ordem em que aparecem no disco, na parte principal, com projeções temáticas para cada uma delas. No início, o quarteto aparece no mini palco montado no final da passarela, bem no meio do povão, tocando como se fosse banda de garagem – um desejo que vem sendo manifestado pelo líder e vocalista Bono nos últimos tempos -, em um repertório curto, com músicas pré-“Joshua Tree”, sem telão, sem nada. E, em dois bis para destruir do porteiro ao professor de faculdade, na parte final, é a vez de super hits pós-“Joshua”, com o telão mostrando o show (antes é mais artifício temático/de época), além de, em um raro momento de ousadia, a inclusão de uma das músicas que está sendo preparada para o próximo álbum de inéditas, “Songs of Experience”, que sai em dezembro. Ao todo, são 21 números em cronometradas duas horas de show, incluindo a introdução com uma versão para “The Whole of the Moon”, do Waterboys, banda contemporânea do U2.

Não deixa de ser um risco, contudo - e não é a primeira vez que isso acontece -, tocar todas as músicas de um único disco, mesmo sendo ele emblemático para a virada na carreira da banda, e um dos mais importantes em todas as épocas. Porque se há blockbusters como “Where the Streets Have No Name”, “I Still Haven’t Found What I’m Looking For” e “With or Without You”, e uma depois das outras, e as três depois do início matador com quatro ícones de uma geração (veja o set list completo no final do texto), tem também músicas que não são tão conhecidas assim, a não ser pelos fãs mais dedicados, e que não eram tocadas nem na época em que “The Joshua Tree” foi lançado, há 30 anos. Corrido o risco, apesar do atraente apelo visual, parar dizer o mínimo, e de a banda tocar tudo ao vivaço e muito bem, o show dá uma caída abissal bem no meio, muito – também – por conta de um público misturado demais e pouco identificado com o rock propriamente dito.

Passeio pelo deserto: o incrível visual das montanhas exibido no telão para o Estádio do Morumbi lotado

Passeio pelo deserto: o incrível visual das montanhas exibido no telão para o Estádio do Morumbi lotado

Só isso pode explicar o desinteresse por várias das músicas do repertório, sobretudo “Bad”, uma das tocadas no “modo garagem”, que chama a atenção de Bono pela apatia do público. “Vocês estão dormindo?”, pergunta um intrigado vocalista, que sabe que não tem sido assim mundo afora, por onde esse giro já passou. Mesmo no fim da primeira parte, ok, que foi encerrada com a sensível “Mothers of the Disappeared”, os pedidos de bis não têm o tamanho equivalente ao do espetáculo oferecido, numa outra prova da heterogeneidade de uma plateia só interessada em super, mega hits. Havia mesmo quem não soubesse que é essa a turnê de aniversário de 30 anos do lançamento de “The Joshua Tree”, em outra demonstração, num olhar mais abrangente, do desinteresse e emburrecimento generalizado desses tempos estranhos.

São pessoas que tampouco sabem que o álbum representa o grande salto na carreira do U2, quando quatro irlandeses atravessaram o oceano para conquistar a América com um disco completamente americano. A banda deixa de lado a imagem pós punk e a as letras mais politizadas dos discos “War” e “The Unforgettable Fire”, e abre espaço para recados universais como o de “I Still Haven’t Found What I’m Looking For”, tudo somado a um certo sotaque country que incluía, além da característica guitarra de The Edge, a batida marcial de Larry Mullen Jr., violões e harmônica. É sobretudo o disco em que Bono amadurece e encorpa a voz que ficaria conhecida para todo o sempre. Curiosamente agora, 30 anos depois, ele corta um dobrado para sustentar o gogó em 120 minutos de show, em uma performance de altos e baixos, de acordo com o sucesso da adaptação que precisa fazer para cantar certos trechos de cada uma das músicas.

O trio restante, de seu lado, segue em plena forma. A batida de Mullen Jr. no início de de “Sunday Bloddy Sunday”, com o volume no talo, é uma das coisas mais instigantes no mundo da música. Assim como as transições de teclado para a guitarra e vice-versa de The Edge em “New Year’s Day”, tudo isso no inspirador “modo garagem”. Ou o baixo de Adam Clayton rebuscado das profundezas da música negra americana em “Bullet the Blue Sky”, numa versão arrebenta assoalho, com efeitos de esmeril nos músicos nas imagens do telão. Mas poucas canções sintetizam tão bem esse som característico que o U2 inventou e que todo mundo gosta, como o início de “Where the Streets Have No Name”. A guitarra minimalista, o baixo marcado, grave, com groove e assinatura, a pegada marcial oitentista da bateria, tudo firmando espaço para a entrada de um vocalista, ainda nos dias de hoje, extraordinário.

A estrada que parece se movimentar em direção ao público, em 'Where The Streets Have No Name'

A estrada que parece se movimentar em direção ao público, em 'Where The Streets Have No Name'

Mais que cantor e band leader, Bono é figura pública proeminente e desanda a falar e citar outros artistas em tudo o que é música. Em “Ultraviolet (Light My Way)”, dedicada a mulheres que “lutam e resistem” na parte final, o telão mostra imagens que vão desde Michele Obama e Frida Kahlo a Michelle Bachetet e a brasileira Tarsila do Amaral. Em “Bad”, “Heroes”, de David Bowie, é a música incidental, quando Bono homenageia Renato Russo e Cazuza. “Rebel Rebel”, também de Bowie, tem versos citados durante “Vertigo”, que tem uma das maiores adesões por parte do público, e em “Elevation”, é Larry Mullen Jr. quem aparece com uma camiseta com a frase “Censura Nunca Mais”, em português, impressa às costas, numa referência aos últimos acontecimentos por esse Brasil varonil. Nem precisava a imagem gigante da bandeira brasileira no telão, no enceramento, depois da sempre comovente “One”, né?

Para uma música lançada há pouquíssimo tempo, “You’re the Best Thing About Me”, com refrãozinho fácil de cantar, não faz feio na abertura do último bis, e tem o respeito do público. Entre as não hits de “Joshua Tree”, brilham a enviesada “Exit”, pesada e repleta de citações, precedida por um vídeo crítico ao presidente americano; e “In God’s Country”, que não passa desapercebida com um solo The Edge signature. É curioso que nenhuma música dos dois discos mais recentes, o seguro “No Line on the Horizon”, e o bom “Songs of Innocence”, tenha entrado no show, e que “Pop”, do pior momento da carreira do U2, cujo lançamento faz 20 anos este ano, seja levemente citado nas imagens dos rostos dos integrantes na época, no telão, durante a lindona “Beautiful Day”. Com todos os poréns, eis aqui um espetáculo obrigatório pelo entorno inovador, pelo repertório raro e pela coragem de reverenciar um álbum essencial para a história do rock. Se puder, não perca uma das três próximas oportunidades, dias 21, 22 e 25.

Set list completo:

1- Sunday Bloody Sunday
2- New Year’s Day
3- Bad
4- Pride (In the Name of Love)
The Joshua Tree
5- Where the Streets Have No Name
6- I Still Haven’t Found What I’m Looking For
7- With or Without You
8- Bullet the Blue Sky
9- Running to Stand Still
10- Red Hill Mining Town
11- In God’s Country
12- Trip Through Your Wires
13- One Tree Hill
14- Exit
15- Mothers of the Disappeared
Bis
16- Beautiful Day
17- Elevation
18- Vertigo
Bis
19- You’re the Best Thing About Me
20- Ultraviolet (Light My Way)
21- One

Bela imagem com a 'Joshua Tree' em destaque; pelo tamanho dos músicos se vê a imensidão do telão

Bela imagem com a 'Joshua Tree' em destaque; pelo tamanho dos músicos se vê a imensidão do telão

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