O Homem Baile

Ousados

No Porão do Rock, Ira! e Nação Zumbi tocam a íntegra de álbuns consagrados e deixam de fora grandes sucessos. Fotos: Gerdan Wesley/Divulgação Porão do Rock.

O vocalista Nasi se diverte no show do Ira!, depois de um início um pouco difícil no Porão do Rock

O vocalista Nasi se diverte no show do Ira!, depois de um início um pouco difícil no Porão do Rock

A ferramenta já é usada há muitos anos por bandas que tem extenso currículo: tocar a íntegra de um álbum que fez sucesso, em uma data marcante. Foi essa a estratégia adotada por Ira! e Nação Zumbi, no último sábado, no Festival Porão do Rock, em Brasília. O primeiro sacou seu disco de maior sucesso, “Vivendo e Não Aprendendo”, que completa 30 anos de lançado este ano, e o segundo veio com “Afrociberdelia”, 10 anos mais moço, que flagra o grupo, ainda com Chico Science, no auge do mangue beat. Cada show aconteceu em um dos palcos principais da 19ª edição do evento, montados lado a lado no Estacionamento do Estádio Mané Garrincha. Em um terceiro palco, do lado de trás, aconteciam os shows com as bandas de som pesado, simultaneamente.

Tocar todas as faixas de um disco, e na ordem em que elas foram originalmente gravadas, pode não dar certo porque há sempre aquelas que não são de conhecimento do público, e que sequer eram tocadas ao vivo, mesmo na época em que o tal disco foi lançado. Nesse sentido, embora o disco da Nação, lançado na época do CD, tenha muito mais músicas, o Ira! se dá melhor porque, entre as 10 faixas de “Vivendo e Não aprendendo”, há muitos hits que fazem qualquer transeunte se sentir íntimo. Ou seja, para cada “Casa de Papel”, que Nasi precisa ler a letra em uma cola presa no piso para não se enrolar, há uma “Flores em Você”, tema de novela global. Para cada “Tanto Quanto Eu”, há uma “Envelheço na Cidade”, trilha sonora para todo fã de rock que viveu a década de 1980.

O inspirado guitarrista Edgard Scandurra, com sua canhotinha de outro em ação no show do Ira!

O inspirado guitarrista Edgard Scandurra, com sua canhotinha de outro em ação no show do Ira!

O Ira!, contudo, não é de ceder tanto assim ao sistema, mesmo porque, entre as bandas de sucesso da era de ouro do rock nacional, é seguramente a que sempre se manteve mais, digamos, alternativa. Daí o início do show, com “Rubro Zorro” – ótima música, diga-se -, do álbum esquisito deles, “Psicoacústica”, causar estranheza até para o fã mais atirado. Assim como “Sem Saber Pra Onde Ir”, do obtuso “Invisível DJ”. É como se fosse passada a mensagem: “olha aqui, vamos tocar o disco de sucesso, mas somos íntegros”. Por isso o início causa estranheza até para Nasi, que sua a camisa para atrair uma maior participação do público, já bem grande (15 mil no total, segundo os produtores), no horário nobre do festival. Problema que se resolve com “Eu Quero Sempre Mais”, afamada pela gravação com Pitty para o disco acústico, e pela retirada estratégica de “Tardes Vazias” do repertório.

E, também, pela força da banda em si, entenda-se Edgard Scandurra. Se Andre Jung e Ricardo Gaspa não estão nessa formação, e Daniel Scandurra (filho do homem, baixo), Evaristo Pádua (bateria) e o discreto Johnny Boy (teclado) apenas cumprem tabela, Edgard está em noite inspirada. O que ele faz com a canhotinha mágica em “Dias de Luta”, que contém um dos maiores riffs do rock nacional, não está no gibi. É criar magnitude no simples. Em “Flores em Você”, ele se multiplica e “vira orquestra” com grande desenvoltura, e “Vitrine Vive”, siamesa no funk de verdade, tem o beat box de Nasi. No fim, até “Pobre Paulista”, de conteúdo questionado em dia menos tolerantes, ganha a adesão do público ao ter o refrão convertido para “pobre Brasília”.

Scandurra, no fundo, sem foco, e Nasi: juntos de novo depois de muitas desavenças na carreira

Scandurra, no fundo, sem foco, e Nasi: juntos de novo depois de muitas desavenças na carreira

É a primeira vez do Ira! no Porão do Rock, que já recebeu a grande maioria as bandas reveladas na década de 1980. Por conta dos horários de um festival (uma horinha só), o show de “Vivendo e Não Aprendendo” tem três músicas a menos e o repertório ligeiramente modificado se compararmos com a estreia, em junho, no Circo Voador, no Rio (relembre). Mas há tempo para “Núcleo Base”, a canção antibelicista juvenil que foi cartão de visitas para o Ira! em início de carreira. É aí que todo mudo se dá conta de que poucas bandas retratam tão bem a juventude em todas as épocas quanto o Ira!. E é daí que vem o combustível para grupo seguir em frente, seja revivendo discos clássicos ou lançando material inédito; já tá na hora, né?

Diferentemente do que acontece com “Vivendo e Não Aprendendo”, do Ira!, não há unanimidade quanto “Afrociberdelia” ser o álbum de maior sucesso da Nação Zumbi. O disco compete fortemente com “Da Lama ao Caos”, que inaugurou o mangue beat, do Recife para o Brasil. São os únicos dois trabalhos feitos com Chico Science, morto precocemente em um acidente de carro em 1997. E, ainda, a Nação tem um álbum com material novo, lançado há dois anos, para mostrar, muito embora não haja tempo que sobre das 20 faixas de “Afrociberdelia”; só a vinheta “Interlude Zumbi” dançou. Assim, o repertório torna-se desconhecido por boa parte da plateia, mesmo para aqueles mais animados que esboçam acompanhar cada verso lido por Jorge Du Peixe em um púlpito montado estrategicamente à sua frente.

O vocalista da Nação Zumbi, Jorge Du Peixe: fora Temer e o chamado para o povo voltar às ruas

O vocalista da Nação Zumbi, Jorge Du Peixe: fora Temer e o chamado para o povo voltar às ruas

Por isso a apresentação, antes de ser do tipo “vamos pular o tempo todo” é uma exibição/demonstração da essência do mangue beat, o último sopro de novidade da combalida música popular brasileira. E tocada por gente que se tornou tão especialista que fica difícil salientar essa ou aquela parte do todo. Se as alfaias dão o tom ao se contrapor às perturbadoras viagens de Lúcio Maia, um dos guitarristas mais inventivos que o Brasil já produziu, do outro lado do palco a dupla Pupilo/Dengue, bateria e baixo, respectivamente, mantém um groove extraordinário e indissociável do todo. Maia esmerilha a guitarra em músicas como a instrumental “Quilombo Groove”, mas também enfileira texturas viajantes em “Um Passeio no Mundo Livre” e em “Um Satélite na Cabeça”, peça do noise rock, destrói no desfecho pesado, mas encorpado.

O show tem o necessário “Fora Temer” e o chamado às ruas de Jorge Du Peixe, que só não tem mais apoio do que clássicos consagrados – aí sim – como “Manguetown” e “Maracatu Atômico”, sendo que as músicas foram tocadas na ordem em que aparecem no disco. Poucas vezes uma releitura de uma canção emepebista causou tanto impacto como esta segunda, talhada para a Nação Zumbi tocar, como em uma premonição de berço ao ser composta por Jorge Mautner e Nelson Jacobina mais de 20 anos antes. E o público, de nariz torcido com tantas músicas pouco conhecidas (não tem “Quando a Maré Encher”!), se acaba, sobretudo no refrão onomatopeico. O que, nos fim da contas, dá ao show a pecha de “para iniciados”, só salvo pelos arranjos das alfaias que tanto seduzem em tudo o que é canto. Uma apresentação um tanto ousada para uma das bandas principais do Porão do Rock desse ano.

A texturas viajantes e os solos de Lucio Maia, um dos guitarristas mais inventivos da música brasileira

A texturas viajantes e os solos de Lucio Maia, um dos guitarristas mais inventivos da música brasileira

Set list completo Ira!:
1- Rubro Zorro
2- Flerte Fatal
3- Eu Quero Sempre Mais
4- Sem Saber Pra Onde Ir
5- Pra Ficar Comigo
6- Envelheço na Cidade
7- Casa de Papel
8- Dias de Luta
9- Tanto Quanto Eu
10- Vitrine Viva
11- Flores em Você
12- 15 Anos (Vivendo e Não Aprendendo)
13- Nas Ruas
14- Gritos na Multidão
16- Pobre Paulista
17- Núcleo Base

Set list completo Nação Zumbi:
1- Mateus Enter
2- O Cidadão do Mundo
3- Etnia
4- Quilombo Groove
5- Macô
6- Um Passeio No Mundo Livre
7- Samba do Lado
8- Maracatu Atômico
9- O Encontro de Isaac Asimov com Santos Dumont no Céu
10- Corpo de Lama
11- Sobremesa
12- Manguetown
13- Um Satélite na Cabeça
14- Baião Ambiental
15- Sangue de Bairro
16- Enquanto o Mundo Explode
17- Criança de Domingo
18- Amor de Muito
19- Samidarish

Vista geral de um dos palcos principais do Porão do Rock desse ano, com a Nação Zumbi no palco

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