Reconfigurado
Em show marcado por reencontros, Sisters Of Mercy consolida formação que não lhe é própria e lida bem com os clássicos de uma carreira singular. Fotos: Alessandra Tolc.
A música é, na maior parte do tempo, down e a atmosfera é obscura, mas o clima no público é de festa e reencontro com a banda, que, de certo modo, também se reencontra com si própria. Isso porque, afastada do Rio por 10 anos, o Sisters volta em uma fase mais acolhedora que reinclui os grandes clássicos – sem o pudor de outrora - e subtrai do repertório músicas que ninguém sabe de onde vêm nem para onde vão. Explica-se que desde 1993 eles não gravam nem lançam nada, mas seguem compondo e tocando nos shows músicas que simplesmente não têm registro algum nesses tempos de multicomunicação. Dessa vez, no lugar de um punhado de obscuridades sérias, apenas três dessas ditas novas são tocadas, pela ordem: “Crash and Burn”, “Arms” e “Summer”, que inclusive dá nome à turnê. Ditas novas porque, honra seja feita, estão nos shows há no mínimo sete anos, embora – repita-se – sem nenhum registro fonográfico.
As três são marca dessa atual formação que já dura 10 anos e tem, além do ícone de voz grave Andrew Eldritch, Chris Catalyst e Ben Christo, cada um em uma guitarra, e Ravey Davey, antes operador da bateria eletrônica Doktor Avalanche, hoje saidinho e responsável pela inclusão de um sem numero de efeitos pré-gravados. Tanto que “Crash and Burn” apresenta guitarras bem mais rascantes que a média do repertório do grupo, com um desfecho bem pesado. “Summer” começa como um verdadeiro verão sombrio de gelar a alma, e logo se converte em um apego para a plateia, e “Arms” funde teclados e guitarras na mais clara relação entre esse trio de “novidades”. Registre-se que, na maior parte do tempo as duas guitarras, somadas, não fazem o trabalho de uma, e o minimalismo inventado por ex-integrantes seminais como Wayne Russey e Gary Max praticamente não existe mais.No que vale a lembrança de que, em essência, o Sisters Of Mercy é uma banda peculiar de vocal ultragrave, bateria eletrônica oitentista sem ser new wave e, na maior parte do tempo, com as linhas de baixo à frente e as tais guitarras minimalistas costurando o entorno. Com essa formação, sem baixista – faz-se um esforço danado para achar o grave fora do gogó de Eldritch – e com guitarristas aspirantes a hard rock sem brevê definitivo, tudo muda de figura. Por isso a saída é emoldurar arranjos que muitas vezes descarrilam a canção do sentido original, como acontece em “Lucretia My Reflection”, no primeiro bis, inimaginável sem a linha de baixo; na trágica “Amphetamine Logic”, só reconhecida pelo desespero vocal do refrão; e na densidade arquimediana de “Flood II”, reforçada por Ravey Davey.
Tem-se, então, uma nova banda cujo elo com o passado marcante é justamente Andrew Eldritch, que se troca o casaco de couro surrado pelo blazer de cabaré, segue firme e fortíssimo com o vozeirão do fundo das trevas dos infernos. Mago dos anos 80, gênio que segue influenciando gerações – uma subdivisão inteira do heavy metal saiu dele –, traduz a própria obscuridade e atmosfera misteriosa que é peculiar ao Sisters. Consta que, contudo, sorri pela primeira vez em muitos anos, em uma boa demonstração de apreço pelo público e pelo show em si. E, vamos e venhamos, em 2006, com essa formação ainda engatinhando, a coisa positivamente não funcionou direito (relembre).A riqueza do repertório casa obscuridades familiares e sucessos do tipo para bombar na pista - sim, eles têm. Em um deles, “Dominion/Mother Russia”, redefinidora das configurações de “épico”, as silhuetas com braços erguidos para cima reproduzem as cenas do extraordinário vídeo “Wake”, gravado no Royal Albert Hall, em 1985. Época posterior a de “Alice”, um petardo que parece pouco doméstico, mas que convence pelo apelo – aí, sim – das guitarras. E também ao excepcional “The Reptile House E.P.”, de onde sai “Valentine”, cujo andamento soturno e batida arrastada antecipavam o doom metal. Em “No Time to Cry”, as luzes estroboscópicas dão o clima, e mesmo sem o raio laser oitentista, “Temple Of Love”, numa versão distante dos remixes mais estendidos e próxima da original, tem um ótimo retorno do público, já no segundo bis.
De um modo geral, todas as músicas são tocadas em versões mais enxutas, o que faz de uma horinha e meia o bastante para os 21 números, quase um exagero para uma banda recordista de lançamento de singles, mas com apenas – repita-se – três álbuns. Mesmo assim, é fácil notar a ausência da sensacional versão para “Gimme Shelter”, dos Stones, incluindo o microfone cravado na garganta de Eldritch; “Walk Away”, irmã de “No Time to Cry”; da quase hard rock “When You Don’t See Me”; e a indispensável “Giving Ground”, peça semiprogressiva dos tempos do Sisterhood, provavelmente substituída por “Jihad”. Mesmo assim, não deixa de ser definitivo um desfecho que tem a emblemática “First and Last and Always” e “This Corrosion”, quando Andrew Eldritch – confirma-se – sorri. O que reforça, pelo conjunto da obra e por essa noite em particular, a certeza de que jamais existirá no mundo da música uma figura como a dele. Muito menos uma banda como o Sisters Of Mercy.Set list completo:
1- More
2- Ribbons
3- Doctor Jeep/Detonation Boulevard
4- Amphetamine Logic
5- Body Electric
6- Alice
7- Crash and Burn
8- No Time to Cry
9- Marian
10- Arms
11- Dominion/Mother Russia
12- Summer
13- Jihad
14- Valentine
15- Flood II
Bis
16- Something Fast
17- Lucretia My Reflection
18- Vision Thing
Bis
19- First and Last and Always
20- Temple of Love
21- This Corrosion
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