O Homem Baile

Êxtase de cair

Imbatível, Matanza desfila crônicas do anti-heroísmo explícito no Circo Voador; festival criado pela banda teve ainda Cólera, Hatefulmurder e Monstros do Ula Ula. Fotos: Nem Queiroz.

O líder do Matanza, Jimmy London, que não só canta, mas interpreta como poucos no rock nacional

O líder do Matanza, Jimmy London, que não só canta, mas interpreta como poucos no rock nacional

O sujeito de envergadura privilegiada, barba ruiva que antecede ao frenesi hipster e vocabulário mais sujo que pau de galinheiro torce uma camiseta ensopada de suor que acaba de ser sacada do próprio corpo, ao vivo, ali, na frente de todo mundo. A cena, já tradicional nos rincões desse Brasil varonil, é o ponto final em um show do Matanza e, mais que um emblema, é retrato vivo de uma banda que deixa literalmente o suor pelos palcos que passa, contando causos com uma intensidade atroz: são nada menos que 33 temas (se a conta não falha) em 100 minutos da mais pura pancadaria sonora que reflete em um movimentado salão de festas. É madrugada de domingo (24/7). É o encerramento do Matanza Fest. É o Circo Voador lotadinho de dar gosto.

A atração especial da noite, contudo, não é Jimmy London, o tal varapau que atua mais como intérprete do que como vocalista, mas o guitarrista Donida, que, de uns tempos pra cá, não tem saído de casa, muito menos para tocar nas intermináveis turnês da banda. Donida é a mola propulsora criativa (“culpado dessa merda toda”, brada Jimmy) que escreve as músicas, letras e desenha o logotipo, as diabas e tudo o que marca o Matanza e hoje está nas camisetas de todos os fãs. Guitarrista técnico dado a criações solitárias dos quintos dos infernos do metal, ele bola personagens sinistros que invariavelmente quebram a cara no final – o malandro que tem o caminhão roubado pela mulher, o bebum decadente que começa na mesa e termina no meio-fio ou o psicopata que explode o shopping e apodrece no xilindró -, mas que, de losers juramentados, se convertem em verdadeiros heróis para os entusiastas da banda. E eles são – repita-se - incrivelmente numerosos.

Marco Donida, atração da noite, empunha a guitarra flying V com a garra inerente ao metal extremo

Marco Donida, atração da noite, empunha a guitarra flying V com a garra inerente ao metal extremo

Com dois guitarristas, porque o operário Maurício segue “formando uma das cinco pontas do pentagrama”, o peso, turbinado por um volume de condenar exame audiométrico, é no mínimo dobrado, e Donida desfila riffs na sensacional “Pandemonium”, síntese da gênese headbanger, uma bela etiqueta para a noite; em “Mesa de Saloon”, já no início, com tonalidades destruidoras; e em “Meio Psicopata”, com o guitarrista empunhando o instrumento como poucos. Juntos, a duplinha arrasa em duelos matadores como os de “Eu Não Gosto de Ninguém”, cujo singelo título é autoexplicativo; na versão estendida (como é possível?) para “Maldito Hippie sujo”; e na impagável “Pé na Porta, Soco na Cara”, entre tantas outras.

“O senhor está pronto para tocar igual ao mestre Lemmy?”, pergunta um metafísico Jimmy para Dony Escobar, fazendo do baixista a escada para a esquete humorística da vez. É a hora do bloco homenagens, que tem “Iron Fist”, do Motörhead, numa versão tosca, e “Five Feet High”, de Johnny Cash, duas pistas para se entender o som do Matanza; tente se for capaz. Dony, o último a assinar a carteira na trupe, está mais magro, mais solto e empunha o baixo com a autoridade necessária para o posto, e o baterista Jonas desfruta de uma plenitude no espancamento inclemente de tambores, pratos e adjacências difícil de ver por aí. É impressionante como eles não erram e tocam cada música em uma velocidade ainda superior em comparação com as versões registradas nos (já?) seis álbuns.

O esbelto baixista Dony Escobar, Jimmy London gesticulando e o ótimo baterista Jonas ao fundo

O esbelto baixista Dony Escobar, Jimmy London gesticulando e o ótimo baterista Jonas ao fundo

Que roda de dança não é notícia em show do Matanza, todo mundo sabe, mas registra-se que a porradaria come solta sem parar, com ênfase em clássicos absolutos como “A Arte do Insulto” e “Ressaca Sem Fim” ou nos braços erguidos no ritmo da mais que clássica “Ela Roubou Meu Caminhão”. Ou ainda em momentos de “descanso” como na comovente “Tempo Ruim” e na genial “Mulher Diabo”, em que Jimmy “toca” na guitarra de Maurício. O vocalista mostra bom fôlego na exaustiva “Odiosa Natureza Humana”, que dá título a mais perfeita obra do Matanza, mas que, sabe-se lá o porquê, cede poucas músicas ao show. Um reles senão de viés torto em uma noite – mais uma – memorável, encerrada pelo ecoar da guitarra somado ao cantarolar dos versos “Estamos todos bêbados/Bêbados de cair/E todos que não estiveram bêbados/Deem o fora daqui”. Não é que é verdade?

Quem já amanheceu o dia com o Cólera tocando a todo vapor sabe que a banda não é de largar o palco. Por isso o baixista/vocalista Val pede desculpas por a banda tocar “apenas” 15 músicas, afinal é um festival. A formação, impensável sem Redson, falecido em 2011, é a possível com o bom Wendel Barros, que, além de cantar bem, guarda certa semelhança física com seu antecessor, e no fim das contas o grupo tem uma apresentação no mínimo honesta para o que pode ser feito. E – ainda tem mais essa – o quarteto (o baterista Pierre e guitarrista Fábio Belluci completam o time) tem músicas novas para um novo disco, sendo que uma delas é apresentada, justamente a sugestiva, já no título, “Festa no Rio”.

Atitude Cólera: o guitarrista Fábio Belluci, o vocalista Wendel Barros e o baixista Val, da formação clássica

Atitude Cólera: o guitarrista Fábio Belluci, o vocalista Wendel Barros e o baixista Val, da formação clássica

O repertório abrange quase todas as fases, mas é a mais antiga que agrada, com a desenterrada “Quanto Vale a Liberdade”; “Medo”, talvez o grande sucesso do Cólera, se é que se pode chamar assim, regravada pela parceira Plebe Rude - e falta uma noite com as duas bandas no Circo; “Humanidade”, necessária nesses tempos tão estranhos; e “Pela Paz Em Todo Mundo”, que inclui o refrão cantado em várias línguas como nas priscas eras do desbravamento das turnês internacionais no peito e na raça. Entre as mais “recentes”, “Águia Filhote” emociona pela homenagem à Redson, mas são poucas as que realmente empolgam, muito embora a roda de pogo não tenha fim. Jamais vai ser como antes, mas faz-se o que é possível e estão todos de parabéns. Porque a torrente de carisma Redson segue viva.

A dúvida quanto à aceitação do público do Matanza ao metal pesadão do Hatefulmurder se dissipa em menos de um minuto. Depois de uma introdução com tinturas épicas, o quarteto vai ao ataque e a turba desanda a patinar de um lado a outro no salão como se fosse o quarteto carioca atração internacional. Isso porque o thrashão deles cai no gosto e não só por questões estéticas. A vocalista mandona Angélica Burns, que ainda conta nos dedos o número de shows que tem à frente do grupo, está bem mais entrosada e compõe uma linha de frente com o guitarrista Renan Campos e o baixista Felipe Modesto que ataca bem o público, em músicas como “No Peace For The Wicked” e “Worshipers of Hatred”, a primeirona. Em fase de preparação para gravar um novo álbum, o primeiro com Angélica, a banda fecha com a ótima “Scars to God”, num raro momento em que o solo de guitarra come solto, abrilhantado pelo peso animal vindo da boa equalização do som. Bom show de um combo que parece crescer em função da grandeza do público.

Hatefulmurder: Renan Campos (guitarra, na fumaça), a vocalista Angélica Burns e Felipe Modesto (baixo)

Hatefulmurder: Renan Campos (guitarra, na fumaça), a vocalista Angélica Burns e Felipe Modesto (baixo)

Na abertura, de outro lado, o Monstros do Ula Ula teve certa dificuldade no diálogo com a plateia. Não que o repertório do grupo, costurado entre punk, surf music e até classic rock não tenha agradado – teve aplauso e tudo -, mas parece que quem chegou mais cedo estava economizando forças para as atrações de fundo. Da formação original – o grupo é do início dos anos 00 e está de volta – só Diba (que já foi baixista do Matanza) enverga a guitarra, mas a banda tem integrantes rodados como o vocalista Lucky Lizard (Metalmania, X-Rated), o baixista Olmar Jr. (Black Future) e o baterista Bacalhau (Autoramas, Planet Hemp). O grupo está prestes a gravar um EP e mostrou músicas inéditas, muito embora tudo soasse novo para a plateia. O material é todo muito bom, mas vale salientar títulos como “Por Causa de Você”, já um clássico; “Piloto Automático”, com pegada sixties atualizada; e o bom arremate com “Não Posso Ficar”. Vale também destacar a intensidade implantada pelo bom guitarrista Gustavo Santoro.

Set list completo Matanza:

1- Introdução
2- Matadouro 18
3- Eu Não Bebo Mais
4- A Arte Do Insulto
5- Bom é Quando Faz Mal
6- Meio Psicopata
7- Taberneira, Traga o Gim
8- O Chamado Do Bar
9- Em Respeito Ao Vício
10- Imbecil
11- Clube dos Canalhas
12- Todo Ódio da Vingança de Jack Buffalo Head
13- Eu Não Gosto de Ninguém
14- Tempo Ruim
15- Odiosa Natureza Humana
16- Ressaca Sem Fim
17- Sob a Mira
18- Maldito Hippie Sujo
19- Remédios Demais
20- O Que Está Feito, Está Feito
21- Pé na Porta, Soco na Cara
22- Conversa de Assassino Serial
23- Iron Fist
24- Five Feet High
25- Pandemonium
26- O Bebum Acabado
27- Rio De Whisky
28- Mulher Diabo
29- Mesa de Saloon
30- Tombstone City
31- Contrycore Funeral
32- Ela Roubou Meu Caminhão
33- Interceptor V-6

Monstros do Ula Ula 2016: Gustavo Santoro, Lucky Lizard, Olmar Jr. e Diba, único da formação original

Monstros do Ula Ula 2016: Gustavo Santoro, Lucky Lizard, Olmar Jr. e Diba, único da formação original

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