O Homem Baile

Lá e cá

Experimentalismo do Dônica e clichês musicais do El Toco contrastam no Rio Novo Rock. Fotos: Nem Queiroz.

O vocalista e tecladista do Dônica, José Ibarra: experimentação e conjugação do verbo caetanear

O vocalista e tecladista do Dônica, José Ibarra: experimentação e conjugação do verbo caetanear

Uma falha do microfone e um roadie em marcha lenta faz parecer que o show do Dônica vai ser completamente instrumental. É a estreia da banda no Meier, na zona norte, longe dos mimos e apadrinhamentos gerais comuns ao outro lado do túnel, dentro do projeto Rio Novo Rock, no Imperator. Não seria surpresa se a apresentação fosse toda sem vocais, já que o grupo, com integrantes muito jovens, é mutante por definição, e vê-se a diferença – acreditem – de um show para outro, como um sobrinho que se surpreende pelo crescimento a cada festa de final de ano com a família do interior. Até Tom Veloso, creditado oficialmente como “composições”, já deixa de lado a timidez e toca discretamente um violão no fundo do palco.

A entrada com “Inverno”, contudo, é uma prova de como os meninos “tocam fácil”, como se estivessem de bobeira dentro de casa, e como o guitarrista Lucas Nunes sobra na turma. A música remete ao rock progressivo setentista, terreno de fértil investida do quinteto, período em que experimentar era o caminho natural. E que realça mais tarde não só em uma música nova, testada sem vocais e com título provisório, mais em outra, “Ordem e Progresso”, quando os músicos trocam de instrumentos e Nunes, dessa vez, transborda musicalidade nos teclados, diante da coadjuvação geral. Parece que esse hábito – do rodízio de vôlei – está passando, o que só tende a fortalecer as capacidades individuais de cada qual em seu lugar; e como toca Miguel Guimarães, o prodígio baixista de rosto imberbe.

O guitarrista virtuose Lucas Nunes garante bom gosto nas viagens instrumentais do Dônica

O guitarrista virtuose Lucas Nunes garante bom gosto nas viagens instrumentais do Dônica

Mas a banda tem um front leader, e Miguel Ibarra, que conjuga o verbo caetanear em vestes e trejeitos, ocupa muito bem o posto. Quando diz que quem quiser pode cantar junto, não é só força de expressão, já que a turma da beirada do palco solta a voz em músicas como “Assuntos Bons”. Em “Praga”, o tom grandiloquente revela a habilidade com as aliterações, herdada não de Caetano, mas de Gil e Gessinger. A música é uma das melhores da noite, e realça outra vez o pé no rock pauleira anos 70, com um ótimo desfecho da virtuose de Lucas Nunes. Boa parte das músicas está no disco de estreia deles, “Continuidade dos Parques”, lançado no ano passado, e vê-se que muita coisa ainda deve mudar. Mais um motivo para ver cada show dessa banda sem igual. Se tiver mais guitarras no próximo, melhor ainda.

A noite começou com o El Toco, banda que existe para impulsionar a verve, o carisma e o que sai da caixola do vocalista e pensador Daniel Toco. Ocorre que é tanta vontade de falar e tanta coisa para dizer que a banda, e por consequência a música, ficam em segundo plano para Toco falar. Assim, na maioria das vezes sua cantoria se torna o discurso propriamente dito, e daí é fácil entender a participação – como tem convidados esse Rio Novo Rock! – do rapper Nyl MC, em “Que Deus é Esse”, lembrando que a música não faz parte da equação do rap. Ou a ponte carcomida com o outro lado da Dutra, de onde vem Daniel Toco, em “Não Existe Amor em SP” (vocês sabem de quem), cuja versão surpreende pelo ótimo desfecho, com um crescente instrumental comandado pelo trompete de outro convidado.

Dônica: Tom Veloso, que aos poucos perde a timidez de subir no palco, interage com Lucas Nunes

Dônica: Tom Veloso, que aos poucos perde a timidez de subir no palco, interage com Lucas Nunes

Desimportante no processo, as músicas do El Toco são standards facilmente identificáveis. Há um rock ali, um funk de raiz acolá, um forró mais pra cá, um reggae pra viajar e assim por diante. Para tal, os músicos são muito bons, tocam tudo certinho, com destaque para o guitarrista Bruno Keleta, que aplica solos em quase todas as músicas - o de “Pão de Queijo” é um dos melhores da noite - e para o baixista figuraça estalador de cordas Sergio Cake. Só que são músicos literalmente de apoio, não dão um passinho fora do círculo de confiança ajambrado por Toco e guardam o que têm de criativo (devem ter) para outras circunstâncias.

O retrato falado mais bem acabado do El Toco é revelado em “A Dica”, quando o vocalista pede licença para apresentar a espécie de “não música” em que o artifício é mais evidenciado. As melhores partes do show são a ode à simplicidade de “Pão de Queijo”; a ingenuamente juvenil “Referências”, com instrumental de gosto duvidoso; e a dúbia “Que Deus é Esse”, quando Nyl MC agrada com um ótimo improviso sobre um tema que tem a pretensão de ser o suprassumo do cabecismo hippie. A seguir nesse caminho, o El Toco vai acabar na trilha de Woodstock, integrante da Sociedade Alternativa de Raul Seixas ou atração residente em ocupação de escola secundarista.

El Toco: todo o carisma de Daniel toco, com o baixista figuraça Sergio Cake concentrado no fundo

El Toco: todo o carisma de Daniel toco, com o baixista figuraça Sergio Cake concentrado no fundo

Set list completo Dônica:

1- Inverno
2- É Oficial
3- Macaco no Caiaque
4- 904
5- Carrossel
6- Retorno Para Cotegipe
7- Ordem e Progresso
8- Casa 180
9- Vem Pra Cá
10- Balada do Corpo Nu (título provisório)
11- Praga
12- Assuntos Bons
13- Bicho Burro

Set list completo El Toco:

1- Xamã
2- Que Deus é Esse
3- Plantio
4- Pão de Queijo
5- Mais de Mim
6- Não Existe Amor em SP
7- A Dica
8- Referências
9- Esses Meninos
10- Sincretizando

El Toco no palco: banda de apoio para Daniel Toco soltar a verve e tudo o que guarda na cabeça

El Toco no palco: banda de apoio para Daniel Toco soltar a verve e tudo o que guarda na cabeça

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